Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
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A intimidade

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A intimidade Arquivo pessoal

No meio da conversa o entrevistador jogou a pergunta, como lidar com a exposição da vida pessoal na crônica, eu não me sentia vulnerável diante do público?

Primeiro, acredito que a grande vulnerabilidade acontece diante do texto. As palavras sabem quando eu as uso em vão, o público nem sempre. As palavras são as minhas co-autoras, não a matéria prima. Para a crônica, a matéria prima do trabalho é a vida e todas as nuances que dela emana. Assim, diante do texto, minhas colegas, algumas amigas outras nem perto disso, ora me mostram o caminho, ora embrenham-me sem dó.

Além disso, costumamos brincar bastante quando estamos numa crônica. Tem dia que é esconde-esconde, às vezes vamos de resta uma e gostamos especialmente do jogo da mentira infiltrada. É simples. Conto no texto duas verdades e uma mentira e elas se misturam na ficção, o importante é a história. A vitória do texto sobre a vida pessoal. Nunca diria que é uma farsa, afinal de contas, não vamos esquecer: a matéria prima é a vida, e mentir faz parte dela tanto quanto a verdade.

Nossa relação é estimulante e bastante divertida. Mas nestas últimas semanas as palavras estão em silêncio. Conto exatamente o que tem ocorrido, na esperança de que alguma colega escritora, de ficção ou não, me envie alguma receita de chá milagroso, uma sequência de alongamento ou um tarja preta adequado.

Tudo começou devagar e eu não percebi os sinais. Por causa da dissertação e a atenção a ela dedicada, deixei de rir como antes. Não perguntei o que estavam sentindo ou se merecíamos uma pausa, férias, quem sabe. Afinal, a cidade litorânea de João Pessoa seria um ótimo cenário. Não. Ao contrário, por causa da situação em que nos meti com um trabalho acadêmico inédito, a rotina foi abalada. Além de trazer palavras estranhas pra dentro de casa, também abri a porta para expressões inteiras pouco usuais. Eu estava perdida e o medo do fracasso me fazia invocar usos da língua que havíamos prometido a nós mesmas nunca recorrer.

Fui ingênua. Perdi a paciência, e com o cansaço, eu não lhes dava atenção, perdi o bom humor e com ele a ironia, a crítica inteligente e o bom senso. Uma fraude. Participando de eventos como cronista, sem escrever uma o mês todo. Reclamava, xingava, colocando a culpa no clima, nas janelas muito abertas e na fartura de peixe do cardápio.

Qual nada. Havia perdido a intimidade e insistir em métodos deploráveis, me fez perder a confiança delas. As palavras sabem quando as usamos em vão, lembram-se? Pois bem… Me deixaram terminar a dissertação, mas não sem custo. E com um novo prazo que se apresentava, troquei a roupa de acadêmica para uma emprestada de uma colega, na falta de um figurino próprio de contista. A amiga disse que não era o ideal, mas que quebrava o galho por enquanto.

Ela tinha razão, o material ficou pronto, a maior parte do público reconhece ali a estrutura do conto, e dentro do prazo, já a crise dentro de casa… Antes se eu conseguia requentar com muito sacrifício e chantagens uma crônica ruim para renovar a carteirinha semanal de cronista – pense num documento desvalorizado – agora é um silêncio seco. Elas sumiram! Escafederam-se!

Amigas, sei que já abusei muito da boa vontade de vocês, mas peço que se apiedem desta pobre cronista. Não quero roubar o lugar de ninguém na literatura, eu só quero me expressar de novo. Perdi minhas palavras. Não sei se foram embora, se estão de visita na casa de alguém, se viajaram pro estrangeiro. Procurei na casa inteirinha, li romance nacional, africano, conto canadense, poesia pernambucana. Chorei, passei um café e nada. Dramaturgia gaúcha, ensaio francês, crônica mexicana. Nada. Romance argentino não teve efeito.

Já não durmo. Se não escrevo uma crônica na semana os sonhos se acumulam, e este abundar de imagens me perturba. Já não como. Se não escrevo uma crônica, perco a vontade de caminhar, e sem exercícios o corpo não tem apetite. Por favor, alguém dê uma volta na cidade, sente numa mesa de bar, pergunte por minhas palavras e seu paradeiro. Digam-lhes que não faço mais. Nunca mais irei sobrecarregar nossa rotina, ignorar as necessidades, os prazeres e arriscar nossa intimidade de anos. E por favor, que me perdoe o público, esta exposição.


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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