Crônica | Juremir Machado da Silva

Aniquilar, romance implacável

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Aniquilar, romance implacável

Temos o mau hábito de fazer frases definitivas do tipo, fulano é o melhor escritor da atualidade. Para afirmar isso, teríamos de ter lido todos. Faço um esforço e corrijo o que já ia escrever. Fica assim: Michel Houellebecq é o melhor escritor que li entre os que estão em atividade. O único capaz de rivalizar com ele é Mario Vargas-Llosa. São estilos diferentes. Mesmo um Paul Auster fica devendo. Li muita gente. Creio que li a maioria dos que contam por agora. Michel Houellebecq me parece imbatível. O seu mais recente romance, “Aniquilar” (Alfaguara), é implacável, impiedoso, emocionante e muito engraçado. A gente ri da própria miséria existencial. Pau puro.

Houellebecq tem uma temática obsessiva: a decadência da família pós-1968. E uma ferramenta narrativa: a ironia. No Brasil, para ter alguma chance de emplacar rápido, melhor ser barroco, o que Machado de Assis chamava de “estilo asmático”: “O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim”. O texto de Houellebecq é límpido: “Em algumas segundas-feiras de final de novembro ou início de dezembro, especialmente sendo solteiro, você tem a sensação de estar no corredor da morte”. O escritor fala de solidão, desamparo, melancolia, falta de sentido para a vida, mesmo ou especialmente quando ela está ganha. Em “Aniquilar”, ele conta a história de um homem com um câncer na mandíbula. Ao mesmo tempo, narra a história do pai desse homem, internado numa clínica para pacientes irrecuperáveis, de onde terá de ser sequestrado para ter o conforto de morrer em sua casa.

Para tanto, os familiares contratam um grupo chamado de fascista por se entregar a operações como a liberação de pacientes mantidos em hospitais em função da burocracia estatal. Houellebecq não é de esquerda, vive às turras com os muçulmanos – há pouco enfrentou um novo processo, depois retirado, do reitor da mesquita de Paris –, detona as utopias disponíveis no mercado das ilusões, ironiza a vida online e, no fundo, parece dizer todo o tempo: a vida em família era ruim, com muita hipocrisia, mas não se colocou nada menos pior no lugar dela. Os seus livros retratam a solidão em cidades como Paris.

Em “Aniquilar”, o protagonista quer viver, amar, ser amado, transar, manter contato com os seus. Não é tarefa fácil. Quando parece que vai conseguir, vem a doença. Como pano de fundo, para dar tempero à narrativa, tem uma história de atentados cibernéticos com ênfase esotérica e uma campanha eleitoral para a presidência da França, com ampla participação de uma marqueteira cínica e inescrupulosa, o que para Houellebecq é simples redundância. Nada escapa do seu escárnio: a autoajuda generalizada e humilhante, as tendências místicas prontas para crer, a obsessão pelos cuidados corporais em academias, os orientalismos sempre em voga, o consumismo desesperado, as lutas por prestígio profissional, a tendência a enviar os idosos para o que ele ainda costuma chamar de asilos, o narcisismo de uma época em que a regra parece ser viva e se livre de quem atrapalhar o seu viver:

“Família e conjugalidade, estes eram os dois polos residuais em torno dos quais se organiza a vida dos últimos ocidentais nesta primeira metade do século XXI. Outras fórmulas foram imaginadas, em vão, por pessoas que tiveram o mérito de pressentir o desgaste das tradicionais, mas não conseguiram conceber novas fórmulas, e cujo papel histórico foi, portanto, totalmente negativo”.

 Ele procura sempre o contrapé das modas dominantes. Fustiga o identitarismo, o esquerdismo, a extrema direita, os fanatismos religiosos, etc. Se duvidar, nem o pilates escapa. Tudo paliativo.

Certas passagens do romance são duríssimas:

“Menos de três semanas antes, ele era uma pessoa normal, sentia desejos carnais, podia fazer planos de férias, vislumbrar uma vida longa e talvez feliz, agora mais do que nunca, aliás, desde que voltou com Prudence, ele sempre a amou, e ela também sempre o amou, isso era uma coisa evidente. E então, no breve tempo de algumas consultas médicas, tudo havia mudado, a ratoeira tinha se fechado sobre ele, e não ia se abrir, pelo contrário, ele ia sentir sua mordida cada vez mais cruelmente, o tumor continuaria devorando sua carne, até aniquilá-la. Tinha sido jogado em uma espécie de tobogã incompreensível, cuja única saída era a morte. Quanto tempo ainda lhe restava? Um mês? Três meses? Um ano? Essa pergunta teria que ser feita aos médicos. Depois seria o nada. Um nada radical e definitivo. Não veria mais nada, não ouviria mais nada, não sentiria mais nada, jamais. Sua consciência teria desaparecido por completo, e tudo seria como se ele nunca tivesse existido, sua carne apodreceria na terra – a menos que optasse pela destruição mais radical da cremação. O mundo iria continuar, os seres humanos se acasalariam, sentiriam desejos, perseguiriam metas, alimentariam sonhos, mas tudo isso iria acontecer sem ele”.

Longa citação. Houellebecq está inteiro nela. Os seus romances, que são também, em geral, muito engraçados, fazem grandes parecer literatura infanto-juvenil. Mesmo um gigante como Lobo Antunes, que deveria ter levado o Nobel que José Saramago abocanhou, não é tão verossímil assim em alguns momentos. Comparar Houellebecq e Annie Ernaux remete a um exercício de esperança na vida eterna. Algo assim. Os livros de Michel Houellebecq não parecem ficções criadas para matar o tempo do leitor e mostrar a habilidade do autor em criar narrativas verdadeiras. Parece simplesmente que está comentando a vida como ela se dá a ver. Em “Aniquilar”, Michel revisita todos os seus romances anteriores. Tem um pouco de cada um. O começo lembra “Extensão do domínio da luta”, seu livro de estreia, que traduzi para o Brasil, assim como fiz com “Partículas elementares”, introduzindo o escritor entre nós, antes de as grandes editoras o sequestrarem.

Continuamos amigos. Outro dia, ele me falava da sua vontade de partir para o exílio. Ofereci o Brasil. Ele pensa em Israel.

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