Juremir Machado da Silva

Acrescento um verso

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Acrescento um verso Juremir Machado da Silva - Colunista - Matinal Jornalismo. Foto: Ana Claudia Rodrigues/Divulgação

Quando fiz 50 anos, publiquei o poema que segue. Hoje, ao completar 61, acrescento um verso, uma frase, um dedo de reflexão.

Autorretrato de meio século

A tábua não tem salvação, sendo apenas pássaro na manhã.
A tábua é como uma irmã na correnteza da estação.
A gente arruma, afina, refina e cobre de verniz.
Nela nada se escreve, muito menos o que se diz.

O mundo é tábua, estação, correnteza e manhã.
Mas se me perguntam: por que pássaro?
Mas se insistem: por que manhã?

Mas se persistem: por que correnteza?
Mas se debocham: por que mesmo tábua?
Faço de conta que não é comigo, tenho 50 anos.
Tenho 50 anos e isso me autoriza alguma coisa.

São cinco décadas alisando tábuas, ruas, perfis.
Tenho 50 anos de idade e a ciência da cidade.
Tenho 50 anos de vida e a certeza da descida.

Tenho 50 anos de estrada e a sina já bem talhada.
Tenho uma mala de lembranças, atalhos, lambanças,
Um seguro de vida, fundo de garantia, uma cirurgia.

Tenho 50 anos de viagens, andei de casa até aqui.
No começo, tudo se distancia, pensamos estar longe.
Depois, tudo se reaproxima e nos descobrimos tão perto.

A grande viagem não passou de um salto no incerto.
Fazemos as contas dos mesmos quinhentos quilômetros.
Houve um tempo, eram como cinco mil, intransponíveis.
Hoje, não passam de 50, ali, ali, tão disponíveis.

A grande viagem de volta é uma tábua sem inscrição.
Apenas a bagagem é diferente, um pouco mais pesada.
Tenho 50 anos de idade e uma mala cheia de planos.
Planos de aposentadoria, de sabedoria, alegoria.

Quero fechar o passado e abrir uma pousada na praia.
Quero fechar a praia e abrir um bar do passado.
Quero escrever o livro que sonhei aos 20 anos.

Quero apagar o livro que escrevi aos 30 anos.
Quero cantar o samba que esqueci no morro.
Quero me embalar na rede sem pedir socorro.

Tenho 50 anos de idade e alguma leitura.
Tenho 50 anos de idade e certa gastura.
Andei por aí apagando fogos e acendendo velas.
Fiz da vida aquarela, passarela, vias paralelas.

Quando parti, uma carta demorava quase um mês.
Havia tanto a dizer, tanto a saber, tanto a lembrar.
Seis meses longe de casa e era um mundo que mudava.

Agora que volto, 30 anos depois, tudo está igual.
Mas as mensagens chegam em profusão, muitas por vez.
Nada tenho para dizer, saber, talvez lembrar.

Tenho 50 anos e toda a memória do que fui.
Só aquilo que prometi não ser é o que rui.
Tenho 50 anos e alguma visão do meu futuro.

Tenho 50 anos e toda a memória do escuro.
Um sol da meia-noite molhado num daiquiri.
Um frio polar, a alma só não é daqui.

Tenho 50 anos e os sentimentos imundos.
Vi na televisão mais guerras que Ulisses
Nas suas andanças viu águas e terras.
Tenho 50 anos e um quarto nos fundos.

Vejo da minha janela serras e poentes.

Por vezes, me abalo com amigos doentes.
Mas sempre me levanto e relanço os dados.

Para me alegrar de tristeza, ouço fados.

Tenho 50 anos e a harmonia das décadas,
Uma composição barroca e dodecafônica,
Uma sinfonia de gritos, a paz afônica.

Tenho 50 anos e uma lesão no joelho,
Uma sinuosa rachadura no espelho,

A foto de Bardot que já não sorri.
A certeza, porém, de que vivi.
E, por birra e polêmica, viverei.

Onze anos de passaram e nada mudou.

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