Juremir Machado da Silva

Derrubada do muro da Mauá como isca

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Derrubada do muro da Mauá como isca Foto: Giulian Serafim/PMPA

Sou pós-moderno: mescla de pré e de nunca. Gosto de público e de privado. Em doses equilibradas. A margem do rio, por ser mínima, em relação ao todo, e bela, deve ser pública, assim como os parques.

A especulação imobiliária sonha em instalar condomínios de luxo às margens do Guaíba, o mais perto possível da lâmina da água. Tentou no Pontal do Estaleiro e foi bloqueada por um plebiscito. Vai tentar de novo no Cais do Porto, mais especificamente nas docas perto da rodoviária de Porto Alegre. Desta vez, tudo indica, vai conseguir, sem o obstáculo de qualquer votação parlamentar ou de consulta ao povo.

No Pontal do Estaleiro a decisão do plebiscito foi driblada com uma malandragem: a pergunta era se o cidadão aceitava ou não residências na área em questão. O “não” ganhou. Os entreguistas, então, deixaram construir um hotel. O eleitor pensava ter recusado qualquer exploração desse tipo ali. Todo mundo quer uma orla bonita, utilizável e ao alcance de todos. O especulador quer uma área especial para poucos, com direito a ver o pôr do sol de pé na frente dos demais. A operação consiste em estimar custos altos e retorno baixo.

A grande isca da vez, porém, é outra, bastante apetitosa: a derrubada do muro da Mauá, velho sonho de muitos porto-alegrenses.

Quer tirar o muro, sugere o governo, precisa aceitar a doação das docas para a iniciativa privada construir residências, pois o custo seria tão elevado que sem essa contrapartida não haveria como implementar a ideia. É pura chantagem. A empresa que ganhar vai levar por 30 anos o Cais, que terá de restaurar, mas poderá explorar comercialmente, e, de lambuja, ganhará as docas para residências de luxo. O secretário Leonardo Busatto, em entrevista ao Matinal, acenou com um doce para crianças que acreditam em Papai Noel: a população poderá brincar no pátio do condomínio sem qualquer restrição. Quem levar isso a sério ganha uma entrada para ver o muro ser derrubado.

Outra isca do discurso governista é um slogan do tipo campanha eleitoral: nenhum recurso público na operação. Aí insulta a inteligência do interlocutor. As docas são patrimônio público, com valor estimado, em cima da perna, em cerca de R$ 100 milhões. Como a entrega das docas aos empresários privados, o Estado estará investindo esse valor no projeto. Muitas zonas portuárias fluviais foram revitalizadas no mundo. Quantas mesmo com instalação de residências? Um leitor me enviou um texto interessante sobre o assunto: “La reconversion des espaces fluvio-portuaires dans les grandes metrópoles”, de Claude Chaline. Gostei, aprendi muito e reforcei minhas convicções. É possível privilegiar o interesse público.

O mundo dá voltas. Houve um tempo em que especialistas, inclusive críticos do privatismo neoliberal, ajudaram, com sofisticados argumentos técnicos, a provar que o Guaíba é lago, não rio. A especulação imobiliária adorava a ideia: sendo lago, tornava-se possível construir quase dentro da água. Em certos casos, passava-se de 500 metros de distância da água para 30. Ou até 15. Lago, lago…

A boiada vai passar. Fonte importante diz que, no máximo, se conseguirá mais alguma contrapartida da empresa vencedora para tocar o projeto: o compromisso de restaurar mais algum prédio público. O Cais Embarcadero, que já funciona, quer rever o contrato com o governo. Os lucros não estão à altura do esperado. Se os apartamentos do condomínio Docas de Porto Alegre, ou Cais Mauá, não alcançarem os lucros projetados, é de se esperar alguma revisão do gênero. Afinal, a regra é sempre a mesma: privatização de lucros, socialização de prejuízos. Enfim, a mercadoria ficará bonita, fora do alcance da maioria, os donos baterão palmas e os críticos serão soterrados.

Especialistas da UFRGS ofereceram de graça um projeto alternativo.

Foram ignorados.

Mantenho minha sugestão: consultar a população nas eleições de outubro. Se é para imitar os Estados Unidos, que seja integralmente.

Deveria ser cláusula pétrea: para construir na margem do Guaíba só com plebiscito. O governo atual odeia consultar a população.

Mata na raiz qualquer plebiscito.

Por que ainda falo dessas coisas?

Por ter acabado de reler Balzac: “Ilusões perdidas”.

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