Juremir Machado da Silva

Godot esteve aqui

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Godot esteve aqui

Personagens:

Didi
Godot

Primeiro ato

Uma praça devastada, o tronco queimado de uma árvore.

Amanhecer

Didi vê se aproximar um homem muito magro, todo de preto.

Didi – Quem vem lá?
Godot – Cansei de esperar por vocês.
Didi – Quem é você?
Godot – Ora, sou Godot. Quem mais poderia ser?
Didi – Por que não apareceu onde o esperamos tanto tempo?
Godot – Vocês é que não apareceram aqui. De toda maneira, o que é aparecer quando se pode ser tudo e ter o mundo nas mãos como uma bola.
Didi – Nunca tive o mundo nas mãos. Nem mesmo uma bola.
Godot – Roubei uma bola quando não queria mais que jogassem.
Didi – Tenho frio (vestindo uma jaqueta vermelha de futebol).
Godot – O frio é sempre noturno (tira um boné vermelho do bolso).
Didi – Nunca tinha pensado…
Godot – Quem não sabe disso (ri cobrindo a boca com a mão esquerda).
Didi – Eu sabia algumas coisas naquele tempo, um tempo, sabe? Aquele. Mas, quero dizer, quero perguntar, quero saber mesmo, quem é você?
Godot – Que eu saiba, eu sou aquele que vocês esperavam.
Didi – Estou ficando tonto. Ando em círculos.

(Ouvem-se risadas)

Godot – Quem vem lá? Está esperando alguém?
Didi – Esperava por você. Mas não aqui (entram dois maltrapilhos disputando um objeto). Ainda me pergunto: o que significa esperar?
Godot – Quem são esses?
Didi – Craquelentos. Aqui era uma cracolândia até a semana passada. A polícia veio e esparramou todo mundo pelo centro da cidade.
Godot (reflexivo) – Brigam pelo cachimbo da paz. Que paz pode haver fora dos círculos elevados. Só vejo a fumaça das ilusões perdidas.
Didi – Nunca tive ilusão a perder.
Godot – Por que me esperava então?
Didi – Justamente por isso.

(Os dois homens param de brigar, sentam-se lado a lado, escoram-se um no outro)

Godot – Não minta. Há sempre espera. Olha como eles esperam pacientemente agora. Se entregam como cordeiros a essa espera que recomeça a cada dia, com chuva, com sol, com esse vento que sopra agora do Norte.
Didi – Não sei como poder ver esperança nesses daí.
Godot – Não falei em esperança.
Didi – Que diferença pode fazer?
Godot (pegando o cachimbo que caiu da mão de um dos homens) – Eu gostava de ver os cisnes no lago. Diziam que eram patos. Para mim eram cisnes. Tudo neles me elevava a mente, como se eu planasse na solidão.
Didi – O que queria com a gente? Falar de cisnes que eram patos?
Godot – Nunca quis nada com vocês. Eu atendia ao chamado. Sei que esperavam algo de mim, algo que esperaram de outros. Nunca prometi nada.
Didi (olhando longamente para o cachimbo e tirando um lenço branco do bolso) – A gente esperava você, não alguma coisa de você.
Godot – Não se espera sem esperança.
Didi – Que vai fazer (apontando o cachimbo)?
Godot – O que se espera.
Didi – Já fumou pedra?
Godot – Estive lá onde a pedra era casa, onde a casa era barco, onde tudo se perdia e se encontrava numa confusão de ruídos, camarada.

(Um dos homens ronca)

Didi – Olha, Mano, não sei de que camaradagem você fala, nem de que pedra. Eu, a bem da verdade, fui Pedro quando precisei, numa enrascada.
Godot – E esperava o que mesmo?
Didi – Naquela época?
Godot – Se lhe agrada pensar naquela época. Ou nesta.
Didi – Esperava o Pozzo, aquele escroto.
Godot – E ele veio, ficou quatro anos e deixou o seu rastro pestilento. Não veio? Não percebeu? Ainda sente o cheiro dele no ar?
Didi – Quem veio foi o Bozzo.
Godot – Que diferença pode fazer?
Didi – A diferença entre a luz e a treva, entre o possível e o inaceitável, o podre e o acre, a vida e alguma coisa que não vale a pena.
Godot – O que vale a pena?
Didi – Vai fumar?
Godot – O que mais tem por aqui?
Didi – Tanta espera por isso!
Godot – Fazer o quê?

(Didi avança para o cachimbo.

Godot recua e canta):

“Já choramos muito, muitos se perderam no caminho…”

Didi – Debocha?
Godot – Decepcionado?
Didi – Eu ouvia outras coisas quando via patos.
Godot – Então você também via patos?
Didi (limpando a garganta):

“Gente de minha rua
Como eu andei distante
Quando eu desapareci…”

Godot (rindo) – Mas o que você queria mesmo era a primavera.
Didi – Não leu a Bíblia?
Godot – Perdi o hábito da leitura quando entendi que os patos eram apenas patos e seriam patos para sempre com suas penas e grasnados.
Didi – Por que esperava que a gente o esperasse?
Godot – O que se pode ganhar invertendo a situação? Havia um pacto a ser cumprido talvez. (Leva o cachimbo a boca sem muita convicção).
Didi – Dá pra ver que não sabe como fazer.
(Godot, olhando para o toco de árvore) – Quem a matou?
Didi – O desespero.
Godot – O que foi feito dela?
Didi – Não adivinha? Virou fumaça.

(Começa a dançar como se tivesse lembrado de alguma coisa subitamente agradável e não pudesse se conter. Um dos homens resmunga alguma coisa).

Godot – Em que está pensando?
Didi – Nunca penso. Pensar não enche barriga.
Godot – Em que acreditou algum dia?
Didi – Nasci sem essa inocência, Brother. O que você pretendia nos dizer se tivesse nos encontrado quando o esperávamos naquele dia?
Godot – Queria ouvir vocês, imagino.
Didi – Não tínhamos nada a dizer.
Godot – Onde está o outro?
Didi (apontando os consumidores de crack) – Aí.

Segundo ato

Didi
Gogo

Homens e mulheres deitados no chão da praça.

Didi – Onde andou?
Gogo – Fiquei esperando você lá.
Didi – Onde?
Gogo – Naquele lugar. E você?
Didi – Fiquei esperando você aqui.
Gogo – Como foi que nos perdemos?
Didi – Eu queria saber.
Gogo – Talvez a gente saiba.
Didi – Preciso te contar algo.
Gogo – Finalmente.
Didi – Godot esteve aqui.
Gogo – Não brinca!
Didi – Nunca falei tão sério desde o tempo em que via cisnes no lago perto de casa, aquele tempo antes de tudo começar, lembra?
Gogo – Você nunca viu cisnes na vida.
Didi – O que sabe de mim?
Gogo (sacudindo Didi como se quisesse despertá-lo) – Como foi?
Didi – Ele esteve aqui.
Gogo – Como ele é?
Didi – Ele é negro.
Gogo – Negro?
Didi – Por que o espanto? Deus também é negro.
Gogo – Como você sabe?
Didi – Ele me disse.
Gogo – Ele quem? Deus?
Didi – Ele.
Gogo – Onde ele foi agora?
Didi – Precisava fazer alguma coisa urgente.
Gogo – Disse alguma coisa?
Didi – Isto (tira um papelzinho do bolso do casaco vermelho de futebo): “No meio da sua praça, e de um e de outro lado do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a cura das nações”.
Gogo – Como devemos entender isso?
Didi – Pensei que você pudesse saber.
Gogo – Ele vai voltar?
Didi – Disse pra gente esperar.

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