Juremir Machado da Silva

Para Michel Maffesoli, a criatividade dará as cartas

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Para Michel Maffesoli, a criatividade dará as cartas Michel Maffesoli na capela positivista

Professor emérito da Sorbonne, Michel Maffesoli, 77 anos, principal teórico da pós-modernidade, esteve em Porto Alegre para uma série de atividades na PUCRS. Deu dois cursos no PUCRS Online, um sobre educação e outro sobre o papel das ciências sociais no mundo atual. No Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS, ministrou duas aulas de metodologia sobre imaginário e sociologia compreensiva. Por fim, palestrou em live da Rede Marista Internacional, para 27 países, falando sobre Universidade, Identidade e Pós-modernidade. Nesta entrevista para o Matinal Jornalismo, responde sobre o futuro da educação, da política e do trabalho. Para ele, o grande trunfo dos próximos tempos será a criatividade. Quem não compreender as mutações do mundo contemporâneo, que passam pela tecnologia, ficará no caminho. Entre os seus grandes livros está “A transfiguração do político, a tribalização do mundo” (Sulina). Um pensador em sinergia com o tempo.

Matinal – Para onde vai a educação?
Michel Maffesoli – A educação é um elemento essencial de toda vida em sociedade. Mas a educação, como ela foi formada nos séculos XVIII e XIX, baseado num professor que detinha o saber e o inculcava na mente dos alunos, creio que está chegando ao fim. Hoje, graças à internet, os jovens têm acesso muito cedo a outras formas de cultura e de informações. Então a partir de agora, em lugar de impor, será preciso negociar. Estamos vivendo uma mutação profunda. A minha hipótese é que estamos passando da educação à iniciação, que se assenta sobre o acompanhamento. O professor continuará existindo e sendo detentor de um saber inegável, mas, em vez de impor seu conhecimento, terá de acompanhar o aluno, em qualquer nível, no seu processo de aprendizagem. Essa mudança requer a compreensão de uma nova realidade.

Matinal – Qual será o lugar da criatividade nessa nova forma de educação ou nesse processo de iniciação ao saber?
Maffesoli – A criatividade será determinante. Para mim, esse é um aspecto característico da pós-modernidade: a ênfase na criação e não mais no que se podia chamar de valor-trabalho. Até o final do século XVIII, na Europa, o trabalho era recusado pelos nobres. Foi no século XIX que o trabalho se tornou o principal fator de estruturação e significação da existência de cada pessoa. Agora, mais uma vez, com ajuda do desenvolvimento tecnológico, as pessoas vão querer cada vez mais poder criar alguma coisa, não apenas realizar tarefas. No fundo, é outra maneira de agir, de aprender, de ensinar e de viver.

Matinal – A tecnologia tem papel essencial nessa mutação?
Maffesoli – Sem dúvida. Na Idade Média, o saber estava na mão dos monges, que copiavam os manuscritos. Quando a tecnologia avançou, com a possibilidade de impressão de textos, uma nova realidade se impôs. Umberto Eco mostra isso muito bem em “O nome da rosa”, especialmente o drama desses homens que estavam perdendo o privilégio que lhes dava o saber. Agora, como na época de Gutenberg, estamos vivendo algo semelhante. A cibercultura faz o que em outro tempo foi feito pela impressão. A mudança que estamos acompanhando estabelece algo central: o importante não será mais memorizar conhecimentos, mas usá-los de modo criativo. Jean Baudrillard falava em viralidade. Internet dissemina informações em todos os sentidos. Como nada é eterno, um modo de produzir e transmitir conhecimentos chegou ao fim. As informações estão disponíveis para todos. Passa a contar mais a capacidade de criar a partir dessa fartura de informações disponíveis.

Matinal – Essa mutação tecnológica que afeta a educação e a vida cotidiana produzirá efeitos também sobre o modo de fazer política?
Maffesoli – Escrevi um livro intitulado “A transfiguração do político, a tribalização do mundo”, traduzido por ti para o Brasil. Nele, mostro que a grande transformação da política está na passagem do cuidado da totalidade para a atenção sobre parte dela. Cada um vai se ocupar cada vez mais do seu bairro, do seu lugar, do seu espaço. A política feita por uma casta de privilegiados, que passa a vida ocupando cargos, o que chamamos de politicagem, perderá terreno. Falo em relação à capacidade de encantar as pessoas. Já se vê isso em muitos países europeus. A consequência disso é o aumento da abstenção em eleições. A política abstrata não seduz. É o concreto, as coisas próximas, que mobiliza os cidadãos. Veremos cada vez mais o retorno da proxemia, conceito que foi muito trabalhado pela Escola de Palo Alto, a relação entre o espaço e o social: voltar-se para a cidade, a comunidade, a rua da cada um. Haverá sempre a necessidade de gerir a vida em comum. Em francês, o termo “político” remete a algo maior do que a expressão “a política”. Portanto, retorno do “político”. O ideal democrático, tornado muito abstrato, está em crise, agonizando mesmo.

Matinal – Ele será substituído pelo ideal comunitário?
Maffesoli –É a minha hipótese, a minha maneira de ver as transformações em curso. No sentido de que nos envolveremos cada vez mais na gestão daquilo que está próximo de nós a partir de associações de bairro, conselhos de vizinhos e outros agrupamentos do gênero. Em Paris temos cada vez mais organizações de bairro. Elas nem chegam a envolver um distrito. É a proximidade mais estrita possível. Eu, que não sou pessimista, acredito que assim se dará a gestão da cidade.

Matinal – Haverá também, como indica o título do seu livro, “A era dos levantes”, cada vez mais revoltas, sublevações e reações populares?
Maffesoli – Isso me parece claro para todos os horizontes ideológicos. Começou na França com os “Coletes amarelos” e chegou aos “Comboios da liberdade”, no Canadá, neste ano de 2022, com grandes manifestações de motoristas de caminhão. Até mesmo nos grandes encontros de jovens em torno da música há algo que remete à revolta. Na França, na Holanda, na Itália, na Espanha e na Dinamarca, mesmo que a mídia não lhes dê espaço, há toda hora manifestações, pequenos levantes, revoltas. A oligarquia política e midiática tentar ignorar tudo isso. Acredito que são coisas que só vão se multiplicar. É o equivalente ao que aconteceu antes da revolução francesa de 1789. Claro que a revolução francesa produziu também o terror. Em todas as cidades, na época, havia insatisfação. O rei foi mesmo obrigado a criar os famosos “Cahiers de doléances”, cadernos com as queixas de cada comuna. Algo não estava funcionando e era preciso agir. Havia discrepância entre o poder oficial e os modos de vida da população no dia a dia.

Matinal – Essas sublevações têm a ver com o desejo de trabalhar menos, ter mais tempo para viver, ter prazer, mais liberdade?
Maffesoli – As novas gerações podem trabalhar muito. Não são pessoas preguiçosas. Eu digo aos empresários que me convidam para palestras que eles não mobilizarão a juventude oferecendo apenas emprego. É necessário abrir-lhe espaço para a criatividade e para a realização pessoal. Não há como eliminar as fantasias e os sonhos dos indivíduos. Pequenas coisas contam muito: espaço de convivência, o café compartilhado, uma viagem de fim de semana, laços amorosos inevitáveis, enfim, a possibilidade de, no espaço do trabalho, experimentar outras coisas que não só a realização mecânica de algo.

Matinal – Além disso tudo, haveria um retorno do sagrado?
Maffesoli – É incrível constatar que muitos jovens não se reconhecem mais no materialismo desenfreado e buscam formas de espiritualidade. O sagrado não quer dizer necessariamente uma religião instituída. É uma necessidade de transcendência. Para mim, o sagrado remete à sensibilidade ao invisível para tentar compreender o visível. Isso assume muitas formas, algumas perversas, como o fanatismo. As sociedades mais sábias são as que conseguem ritualizar o sagrado. A minha metáfora para isso é a da homeopatização do sagrado. A modernidade tentou negar esse sagrado sempre presente. Em nome do racionalismo, eliminava-se tudo o que não coubesse no seu molde.

Matinal – Precisamos de mistério e de rituais?
Maffesoli – O mistério une os iniciados. Isso pode se dar na religião, no esoterismo, na maçonaria ou em outras conjunções. O mistério une e silencia para se manter eficaz. No silêncio dá-se o compartilhamento de um mito. Já em 1978, no meu livro “A conquista do presente”, eu falava de pequenos rituais. Morando no centro de Grenoble, via trabalhadores que se reuniam por alguns minutos, em pé, em bares, para conversar bebendo um copo de vinho. Era um momento da pessoa, da amizade, antes da entrada no ambiente formal do trabalho. Os jovens estudantes de ciências políticas que me visitam e com os quais tomo um copo de vinho têm muitas práticas de ritualização cotidiana.

Matinal – Tendo relações com o Brasil desde 1980, que notícias nota que chegam à França sobre a situação brasileira neste momento?
Maffesoli – Na época da ditadura, conheci muitos brasileiros que se refugiavam na França. Depois, acompanhei a democratização do país. Neste momento, a imprensa francesa está focada, claro, nas eleições deste ano, especialmente no confronto entre Lula e Bolsonaro. O número de artigos publicados na França sobre a situação política brasileira é enorme. Há mais simpatia por Lula e grande expectativa pelo resultado.

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