Juremir Machado da Silva

Zizek e a agressão russa à Ucrânia

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Zizek e a agressão russa à Ucrânia Em março, Lula falou com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, por videochamada | Foto: Ricardo Stuckert/PR

A esquerda brasileira perdeu o gosto pela leitura de um intelectual por quem até não faz muito tempo parecia ter grande admiração? Zizek era o mais famoso pensador de esquerda pós-muro de Berlim. De repente, não é mais citado. Será por causa de sua defesa intransigente da Ucrânia?

Em texto publicado em fevereiro no site Project Syndicate, sob o título “O lado sombrio da neutralidade”, ele citra Lula e dá nomes aos bois: “Em maio passado, antes de ser reeleito presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e seu homólogo russo, Vladimir Putin, têm igual responsabilidade pela guerra na Ucrânia”. Ao exemplificar, Zizek ´é categórico: “Afirmar ser ‘neutro’ na guerra de agressão da Rússia é insustentável. O mesmo vale para indivíduos. Se uma pessoa testemunhar um homem espancando implacavelmente uma criança em uma esquina, esperaríamos que a testemunha tentasse impedir isso. A neutralidade está fora de questão. Pelo contrário, condenaríamos a torpeza moral da inação”.

Pode ser mais claro?

Zizek pegou Roger Waters pelas orelhas: “Ele reconheceu que a guerra da Rússia na Ucrânia é ilegal e deve ser condenada ‘nos termos mais fortes possíveis’. Mas se apressou em acrescentar: ‘A invasão russa da Ucrânia não foi sem provocação, então eu também condeno os provocadores nos termos mais fortes possíveis… A única ação sensata hoje é pedir um cessar-fogo imediato na Ucrânia. Não se deve gastar mais uma vida ucraniana ou russa, nenhuma, todas são preciosas aos nossos olhos. Chegou a hora de falar a verdade ao poder”. O astro do Pink Floyd desafinou segundo Zizek ao dizer: “Talvez eu não devesse, mas agora estou mais aberto a ouvir o que Putin realmente diz. De acordo com vozes independentes que ouço, ele governa com cuidado, tomando decisões com base em um consenso no governo da Federação Russa”. Fala sério, Roger!

Zizek apresentou suas credenciais: “Como uma voz independente que acompanha de perto a mídia russa, estou bem informado sobre o que Putin e seus propagandistas ‘realmente dizem’. Os principais canais de TV estão cheios de comentaristas recomendando que países como Polônia, Alemanha ou Reino Unido sejam bombardeados com armas nucleares”. E tem mais: “O senhor da guerra checheno Ramzan Kadyrov, um dos aliados mais próximos de Putin, agora convoca abertamente para ‘a luta contra o satanismo continuar em toda a Europa e, antes de tudo, no território da Polônia’”.

Minucioso e sem frio nos olhos, como diriam os franceses, Zizek vai logo ao contra-ataque: “A posição oficial do Kremlin descreve a guerra como uma ‘operação especial’ para a desnazificação e desdemonização da Ucrânia”. Fato ou fake? Segundo Zizek, “entre as ‘provocações’ da Ucrânia está o fato de permitir desfiles do Orgulho LGBT e deixar que os direitos LGBTQ+ minem as normas sexuais tradicionais e papéis de gênero”. A ameaça para comentaristas do Kremlin, afirma Zizek, seria o “totalitarismo liberal”. O livro “1984”, de George Orwell, não seria uma crítica ao fascismo ou ao stalinismo, mas ao liberalismo”. Narrativa reacionária?

O pensador até não faz muito aplaudido pela esquerda mundial vai mais longe: “Até onde eu sei, ninguém exigiu que as fronteiras da Rússia fossem alteradas ou que alguma parte do seu território fosse tomada”. Zizek defende a cultura russa, feita de nomes como Tolstoi, e ataca o ditador de plantão, Vladimir Putin: “Assim como estamos apoiando a Ucrânia contra um agressor, devemos defender a cultura russa contra o abusador no Kremlin. Também devemos evitar o triunfalismo e enquadrar nosso objetivo em termos positivos. O objetivo principal não é que a Rússia perca e seja humilhada, mas que a Ucrânia sobreviva”.

Aos países que relativizam o estrago provocado por Putin comparando-o aos horrores do colonialismo ou ao que fizeram os Estados Unidos no Iraque, Zizek responde que essa é uma desculpa fácil: “Afinal, a guerra imperialista da Rússia é em si um ato de colonialismo”. Para ele, quem se declara neutro na guerra da Ucrânia, perde sua legitimidade “para reclamar dos horrores da colonização em qualquer lugar”. Estocada fatal: “Waters é um expoente da resistência palestina à colonização israelense. Por que a resistência ucraniana à colonização russa é menos digna de apoio?” Dirá alguém que Zizek não sabe do que está falando?

Direto ao ponto, ele garante que, por vezes, as coisas são simples mesmo: “É obsceno culpar a Ucrânia pelos atos de destruição russos, ou descaracterizar a resistência heroica dos ucranianos como uma rejeição da paz”. Pedir aos ucranianos que parem a guerra significaria sugerir que “respondessem à agressão russa redobrada abandonando sua própria autodefesa”. A Rússia agradeceria. Não seria paz. Mas rendição. Conforme Zizek, citando o historiador militar Michael Clarke, a Rússia está preparada para uma guerra longa, até que o Ocidente se canse e obrigue a Ucrânia a aceitar a perda de algum pedaço tomado do seu território.

Altivo, Zizek fecha sem concessões: “Waters está quase certo: a Ucrânia está de fato ‘provocando’ a Rússia ao se recusar a se submeter às suas ambições imperiais mesmo diante de adversidades desesperadoras. Neste ponto, a única maneira de parar de provocar seu vizinho revisionista agressivo seria se render. O mesmo, Waters concordaria, é verdadeiro para a Palestina”. O único problema é que “se render ao imperialismo não traz paz nem justiça”. Resta “abandonar a pretensão de neutralidade e agir em consequência”. Putin é só mais um autocrata.

Não vale a pena defendê-lo só por antiamericanismo.

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