Juremir Machado da Silva

Os sertões, um clássico de 120 anos

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Os sertões, um clássico de 120 anos Reprodução

Foi em 1902 que Euclides da Cunha lançou “Os sertões”, livro magistral sobre a saga de Canudos de Antônio Conselheiro. Não seria descabido chamar esse livro de bisavô do romance de não ficção ou de avô do que os americanos chamariam de “novo jornalismo”. Euclides da Cunha produziu o primeiro romance-reportagem brasileiro como obra-prima. Claro, é preciso descontar o seu cientificismo padrão século XIX, ainda mais num militar, e o seu racismo inspirado por Gobineau. Também se sabe que o livro é o oposto daquilo que o repórter chapa branca Euclides da Cunha publicou no jornal O Estado de São Paulo. Nem parece o mesmo autor.

O que não se costuma comentar é que foi Machado de Assis quem instigou a imprensa a mandar alguém cobrir os eventos de Canudos. Em 31 de janeiro de 1897, Machado de Assis escreveu em seu espaço de jornal: “Nenhum jornal mandou ninguém aos Canudos. Um repórter paciente e sagaz, meio fotógrafo ou desenhista, para trazer as feições do Conselheiro e dos principais subchefes, podia ir ao centro da seita nova e colher a verdade inteira sobre ela. Seria uma proeza americana”. A proeza seria maior.

Machado de Assis refletia sobre Canudos: “Que vínculo é este, repito, que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?” O escritor carioca oscilava entre louvar um romantismo rústico dos rebelados ou denunciá-los como perigosos “fanáticos”: “Aquele homem que reforça as trincheiras, envenenando os rios, é um Maomé forrado de um Bórgia”. Por fim, triunfava o liberal sempre pronto a denunciar os que mamavam nas tetas do Estado: “Estou a vê-lo erguer-se e propor indenização para os seus dez mil homens dos Canudos”.

O tema fascinava Machado de Assis desde a sua irrupção. Em 22 de julho de 1894, ele escreveu hesitante: “Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dois mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos”.

De longe, o colunista podia atacar ou brincar: “Jornais recentes afirmam também que os célebres clavinoteiros de Belmonte têm fugido, em turmas, para o sul, atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou mais de um, entre eles o que responde ao nome de Cara de Graxa. Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a árvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes”. O cidadão urbano sonhava com aventuras.

O sonho, porém, não durava. O homem responsável assumia o controle da pena: “Sim, meus amigos. Os dois mil homens do Conselheiro, que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas”.

Em 6 de dezembro de 1896, Machado de Assis comparava Canudos com o beribéri: “Hoje é doença nacional. Quando deram por ela, tinha abrangido tudo. Ninguém advertiu na conveniência de sufocá-la nos primeiros focos. O mesmo sucedeu com Antonio Conselheiro”. Euclides da Cunha entrou para a Academia Brasileira de Letras. Machado de Assis tinha razão: Canudos era uma boa pauta. Se não rendeu em jornal, serviu para um grande livro.

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