Juremir Machado da Silva

Segredos de família

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Segredos de família Reprodução Editora Arquipélago

Nada como se refugiar por alguns dias num paraíso para caminhar, sonhar e ler. Fomos para um hotel em meio a vinhedos em Bento Gonçalves. Detalhe: não bebo álcool faz muito tempo, desde que me tornei adepto da cabeça limpa o tempo todo, especialmente ao amanhecer. Não tem nada melhor. A paisagem e o suco de uva me bastam. Na paz da Serra, li “A estranha ideia de família” (Arquipélago), de Julia da Rosa Simões. Muito lindo. Doutora em História pela UFRGS e tradutora, Julia decidiu fazer da história da avó, Maria, o seu objeto de estudo em nível de pós-doutorado. O resultado é um livro sensível, entre romance e ensaio, sobre o silêncio e a invisibilidade das mulheres na campanha gaúcha, mais especificamente em Santana do Livramento, minha cidade, terra de Dona Maria, mãe do pai da autora.

“A estranha ideia de família”, ainda que apresente elementos do arsenal acadêmico, flui como literatura das boas, romance. Como na velha imagem da boneca russa, um segredo de família sai de dentro de outro. Avô que foi embora e nunca mais voltou, homem que engravidou mãe e filha quase ao mesmo tempo, portugueses que migraram para o Brasil em busca de uma nova vida, alguns que voltaram para terrinha sem avisar, um assassinato que fez as manchetes dos jornais lá por 1968, neto criado como filho, amores sufocados, a solidão das mulheres nas estâncias dominadas pelos homens, as mágoas sendo remoídas em silêncio, Dona Maria, já idosa, respondendo à neta que lhe perguntava como ia: “Regular, minha filha”. Que segredos guardava? De que sofria?

Cada página é uma descoberta. Julia ampara sua escolha acadêmica em bibliografia de peso, de Michelle Perrot a Esteban Buch. Mas nada disso trava a fluência do texto nem torna a história uma tese. Como em toda história familiar com suas turbulências, há traições, mistérios, fugas, ressentimentos e perdões. Há os que perdem e os que ganham. Minha família mora há 45 anos, em Santana do Livramento, na rua Marques Pavão, de quem nunca eu soube muito. Ou seja, nada. Descubro que, por esses embrulhos da vida, ele, de algum modo, faz parte da história familiar contada por Julia. A narrativa de Julia da Rosa Simões revela muita coragem para falar abertamente de tabus familiares, chegando aos sofrimentos do pai dela, tragado pelo Alzheimer. Um livro com a força da autenticidade e da sensibilidade.

Maria e Mena, a mãe dela, me fizeram pensar em muitas mulheres da campanha que conheci como guri daquelas quebradas. Algumas, que me impressionavam pelas rugas e pela severidade aparente, eram duras matronas, que pareciam fortalezas inexpugnáveis, mas que guardavam afetos profundos e sofriam sem deixar escapar uma palavra. Esses silêncios eram compensados por suspiros, gemidos ou expressões em portunhol repetidas como mantras sem razão de ser: “Hay que ser forte”. Dez vezes por dia. Se Maria é mostrada por Julia como a transgressora, que se recusava a voltar à fazenda, Mena é a própria campanha gaúcha da época, rude, fechada, dominada por códigos de honra masculinos que produziam infelicidade para várias gerações. Assim.

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