Juremir Machado da Silva

Tipologia do porto-alegrense

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Tipologia do porto-alegrense Porto Alegre é uma cidade unida por uma só paixão: a da oposição | Foto: Giulian Serafim / PMPA

Conta-se que contar é do jogo. Conto e reconto. É de uma evolução histórica linear e coerente que surgem os três tipos característicos da Porto Alegre atual: os porto-alegrenses “de dentro”; os “de fora”; e os “de cima do muro”. Os “de dentro”, nascidos em Porto Alegre, praticam um amor comedido e sem grandes arrancos ou declarações.

Os “de fora”, vindos principalmente do Interior, são vítimas da lógica da paixão, dividindo-se entre o amor doentio e o ódio quase nunca justificado. Os “de cima do muro” são muito chatos e tentam encontrar equilíbrio onde só tem sentido a divisão e a oposição binária, hoje tão condenada pelos defensores de Putin. Ou Putin que o pariu. Porto Alegre é como a dança da chula: um duro equilíbrio de pernas antagônicas e complementares.

De tanto brigarmos contra os “hermanos” pelas nossas fronteiras, adquirimos o hábito da relação antropológica fundamental dentro/fora. Depois que as culturas do Prata deixaram de ser importantes para nós e que viramos às costas ao Pampa, elegemos o Brasil – os farroupilhas já tinham feito o mesmo – como o novo polo do “fora”.

Passamos nosso tempo medindo nossas forças com os de “fora”. Oscilamos entre a megalomania e o complexo de inferioridade, ou de cusco, que vira-lata é termo trazido do “exterior’. Ora somos muito superiores a todos os de “fora”, ora vibramos por ser reconhecidos pelos de “fora”, ora uivamos de raiva por causa do desprezo dos de “fora”.

Os “de cima de muro” têm os seus momentos de síntese gloriosa e afirmam que Porto Alegre é o caso universal mais eloquente de província cosmopolita: os “de fora” podem tornar-se totalmente “de dentro” por tempo de moradia.

Uma prova disso seria José Montaury, um dos mais longevos administradores de Porto Alegre. Nascido em Niterói, positivista de carteirinha, Montaury governou a capital gaúcha durante 27 anos, até que a Revolução de 1923 acabou com as reeleições. Ao deixar o posto, levava nos bolsos 400 mil réis, o salário do mês. Vem de longe a mania gaúcha de fazer política com honestidade. Mesmo quando se trata de um “de fora”, predomina a ética dos “de dentro”. Montaury tinha lá suas posturas bizarras, conforme relata Walter Spalding: nunca teve dinheiro em banco (lembra a maioria da população brasileira), ficou solteirão e gastava o pouco que ganhava com menores abandonados. Hoje certamente recusaria cartão de crédito e seria chamado de tiozinho.

Montaury atuava no estilo cauteloso que se tornaria a marca gaúcha, até em futebol, depois de passada a moda das “gravatas coloradas”. Era um estilo Celso Roth (lembram dele?), sem arroubos, sem grandes obras, sem endividamentos, com muitos volantes e poucas jogadas pelas extremas. Nosso lema parece mesmo ser: o melhor ataque é a defesa.

Porto Alegre é a capital de um gauchismo meio ressentido, embora com alguma razão. Nossa capacidade de atualizar a oposição dentro/fora é tão grande que, aos poucos, geramos um novo fosso: Metade Sul/Metade Norte. No passado, a Metade Sul era o Rio Grande. Hoje, essa mesma Metade Sul já se sente excluída, de fora, alijada pela Metade Norte. Trata-se de um estranho fenômeno de um conjunto que ficou só com uma metade. O Rio Grande é como uma espécie rara de mula sem cabeça: a Metade Norte (corpo) chupa o imaginário da Metade Sul (cabeça). Uma produz bens materiais; a outra, empresta seus bens simbólicos.

E assim vamos opondo farroupilhas e imperiais, chimangos e maragatos, federalistas e republicanos, A Reforma e A Federação, positivistas e liberais, gremistas e colorados, petistas e não-petistas, bolsonaristas e etc. Porto Alegre comporta-se como a donzela a ser conquistada. O general Neto cercou-a até cansar e não conseguiu nada. Os de “fora”, vindos do Interior, dizem que os de “dentro” nunca fizeram nada de especial pela cidade. Alguns desses “estrangeiros” chegam a questionar se existe de fato o porto-alegrense. Os “de cima do muro” acham isso tudo sem importância e tentam ficar à margem dessa polêmica sem fim, o que provoca sérias desconfianças em relação ao caráter desses incapazes de ser opor francamente uns aos outros.

Porto Alegre centraliza um traço essencial: aqui se pode até se trocar de mulher ou de homem sem dar explicação. Mas de clube de futebol. Aí já é falta de caráter explícita, obscena, pornográfica. O resto é questão pessoal. Porto Alegre é uma cidade unida por uma só paixão: a da oposição. Polarização entre dois termos irreconciliáveis, porém incapazes de viver um sem o outro. O porto-alegrense, altruísta e hospitaleiro, alimenta-se de rivalidade.

Na mitologia sobre o Rio Grande do Sul, alimentada pelo positivismo, costuma-se encontrar a ideia de que por aqui não vicejam as contradições de outras regiões do Brasil. Pode ser. De qualquer maneira, como exemplo, pode-se lembrar que nos inflamados tempos dos positivistas o jornal dos republicanos chamava-se A Federação; o dos federalistas, A Reforma. Os mais célebres cronistas da primeira grande fase intelectual de Porto Alegre – Apolinário Porto Alegre e Aquiles Porto Alegre – nasceram em Rio Grande. Nunca dois “de fora” foram tão “de dentro”. Vou lá fora e já volto.

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