Juremir Machado da Silva

Triângulo da tristeza incontornável

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Triângulo da tristeza incontornável Foto: Divulgação

Tempos de Oscar, tempo de ver filmes para as despesas de conversação. Triângulo da tristeza, de Ruben Östland, trata de poder e da vileza humana. Em situação de perigo quase todo mundo se vende. No caso, um jovem e lindo casal de modelos ganha uma viagem num cruzeiro de luxo e, depois de um naufrágio, acaba numa ilha num agrupamento multicultural, multirracional e com representantes de todas as classes sociais: do negro jovem e miserável ao milionário branco heterossexual e cínico, passando pela chefe das camareiras mestiça e que toma o poder por saber pescar, fazer fogo e limpar um polvo. Os outros eram inúteis. A tragédia escolheu a dedo os naufragados segundo o critério da representatividade. As mulheres comandam, os homens mentem, roubam, atrapalham e buscam proteção.

O melhor momento do filme é duelo de citações, em meio à tempestade que faz o iate balançar e todo mundo vomitar, entre o comandante americano socialista do navio e o capitalista russo, que defeca Ronald Reagan por todos os buracos. Todas as misérias humanas rapidamente aparecem: inveja, ciúme, ressentimento, raiva e desejo de vingança. Não deixa de ser interessante ver a inutilidade de um Rolex num lugar em que o tempo não se move e é preciso buscar comida no mar com as mãos ou matar um burro a pedradas. Os frankfurtianos, aqueles pensadores que atacaram a “indústria cultural”, não fariam melhor em termos de desconstrução do mundo da mercadoria, sendo que, além da comida, o sexo é uma das mais valorizadas mesmo em situação extrema.

Sem ser maravilhoso, por apelativo em alguns momentos, especialmente no gosto escatológico do diretor por mostrar golfadas de vômito e merda jorrando dos vasos sanitários, Triângulo da tristeza, é um bom filme. Dificilmente, porém, será aplaudido por membros do MBL ou usado para ilustrar palestras do Fórum da Liberdade. Não sei, tampouco, se emplacaria num evento de esquerda, pois pode parecer um tanto complacente com os ricos na hora do desespero. Afinal, eles se comportam exatamente como os pobres. Salvo que continuam tentando negociar no mercado futuro, prometendo recompensas em caso de salvação. Não entregarei todo o enredo do filme, embora me dê vontade. Deixarei algumas boas descobertas para o espectador desavisado.

Onde ver? Serviço é fundamental: no Prime Video. Pobre do cinema. Não tem nem a vantagem da pizza como programa, que é não ter louça para lavar. Bem pensado, ainda serve como justificativa para a decisão de ir comer uma pizza. Sou pessimista. O cinema agoniza. Os filmes proliferam. O streaming é viral. Uma boa maneira de ter retorno certo – audiência e lucro – é falar mal do mundo da mercadoria. Vende sempre. Ainda bem. Não se pode usar esse argumento como defesa dos mercadores, visto que são eles mesmos que embalam esse pacote. No filme, chega-se ao inevitável “de cada um conforme as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades”. O problema é que o milionário russo, incapaz de fazer qualquer coisa com suas mãos sujas, necessitava mais cuidado do que a maioria. E a hábil chefe do bando no ambiente inóspito queria mesmo era gozar ali para sempre.

Proust, lançamento do catálogo e visita guiada

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