Juremir Machado da Silva

Um livro com final infeliz

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Um livro com final infeliz Foto: PUCRS / Divulgação

No hospital, li “Tudo é rio” (Record), da mineira Carla Madeira. É preciso fazer alguma coisa enquanto se espera a doença ir embora e se teme que a vida não tenha pressa em nos chamar para o sol. Se um livro prende a atenção em meio à tensão do medo e da impaciência, merece respeito. A crítica, porém, não fica em casa. Esconde-se embaixo da cama. Ou entre os produtos de higiene pessoal. Quando menos se espera, ela dói. Ou dispara.

“Tudo é rio” é um belo livro com um péssimo final. Uma leitora me disse que não gosta do argentino Borges por causa de suas personagens femininas, que aceitariam ser traídas ou agredidas. O romance de Carla Madeira tem uma prosa poética fantástica: “Puta. Não tem outro nome para Lucy”. Ou: “Ficou nua, pelo e pele, chegando poro a poro bem perto, oferecendo a montaria. Lucy tinha um corpo indecente, que convidava aos berros línguas e mãos. Ele sentado, ela de pé, entre o umbigo e os pelos dela, os olhos dele. Ande, homem, hoje eu quero dar pra você, venha com a sua boca sentir o meu gosto. Abuse do me molhar. Você tem sorte, eu sou gostosa demais”. A autora sustenta o fio sem cansaço nem hesitações.

Narrativas de fio esticado costumam romper na metade. Carla Madeira mantém a tensão até o fim. Estica a corda da poesia e não larga. Poesia não quer dizer frases adocicadas. História de uma puta. História de uma “santa”. Um trio, triângulo, trisal infeliz? Lucy, Venâncio, Dalva. E os filhos. História de amor? Histórias de violência, desespero, solidão. A narradora conta sem parar, sem perder o fôlego, sem sair do trilho, sem dobrar a esquina em digressões, surpreendendo, acrescentando camadas de dor. Chico Buarque foi trucidado por numa de suas últimas grandes canções falar em largar mulher e filhos por uma paixão. Até onde pode ir o perdão? Uma mulher pode perdoar um homem que joga o bebê, o filho deles, na parede? Ou longe?

“Tudo é rio” construiu uma trama tão boa que ficou sem final aceitável. A solução encontrada é pífia, decepcionante, fácil demais. Inaceitável. Num romance dessa ordem, sejamos francos, todo final feliz é infeliz. Diante do cenário que montou, a escritora se atrapalhou com o fechamento. Não acredito nessa história de spoiler. Fosse assim, ninguém mais leria “Dom Casmurro” ou “Madame Bovary”. Se não conto o final de uma vez por todas é por concessão ao imaginário contemporâneo. Então o livro é ruim? Não. É bom. É mal escrito? Ao contrário. Muito bem escrito. Qual é o problema? Precisaria de um final melhor. Como está, parece dizer: o amor, com arrependimento pelos atos extremos, justifica tudo, até o abominável. Um romantismo que não casa com a crueza do relato. Na hora do gol, bola fora.

Nem tudo é rio. Há coisas que não fluem, mesmo quando tudo transborda. Ou seria o romance de Carla Madeira uma crítica ao chamado “novo puritanismo”, o movimento que condena exaltações acima do bem e mal? Mais parece, pelo final, merecedor de um subtítulo piegas: o triunfo do amor.

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