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A quem interessa apagar os rastros da ditadura da história de Porto Alegre?

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A quem interessa apagar os rastros da ditadura da história de Porto Alegre? Desgastada, placa instalada em 2021 na Santo Antônio substituiu a original, de 2015, que havia sido concretada | Foto: Geovana Benites/Matinal

Projeto que instalou em 2013 a primeira placa em centros de tortura na capital gaúcha aguarda renovação desde o governo de Marchezan. Com peças deterioradas, o Movimento de Justiça e Direitos Humanos aponta descaso também na gestão Melo

Nove placas distribuídas pelas calçadas de Porto Alegre estão perdendo a luta que travam desde 2013: não deixar cair no esquecimento os crimes cometidos pela ditadura militar, instaurada no Brasil há 60 anos, em 1º de abril de 1964. 

O projeto Marcas da Memória, idealizado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), identifica locais onde os militares torturaram civis durante a ditadura. A primeira placa foi instalada em 2013, durante o governo de José Fortunati, na praça Raul Pilla, onde havia o Quartel da Polícia do Exército. Dois anos depois, foi a vez de sinalizar que na rua Santo Antônio, número 600, funcionou o antigo Dopinho (Departamento de Ordem Política e Social — Dops), local considerado o primeiro centro clandestino de repressão. Em 2021, foi preciso afixar uma nova placa: a original havia sido concretada com cimento. Três anos depois, a peça apresenta muitas letras apagadas, conforme a Matinal constatou na tarde de ontem.

Essa não é a única peça a exibir desgaste. A placa em frente ao Presídio Central está irreconhecível, totalmente rachada. O local – que em dezembro teve sua demolição concluída – foi destino de prisões arbitrárias, torturas e mortes de presos políticos nos Anos de Chumbo. A autorização para a colocação da placa no endereço foi dada pelo então governador José Ivo Sartori, em 2016.

Placa afixada em frente ao Presídio Central está destruída | Foto: SMCEC/Divulgação

O custo de manter viva a memória

Desde o governo Marchezan (PSDB), o MJDH busca renovar o convênio com o município para instalar novas placas e garantir a conservação daquelas já distribuídas pela cidade. No início da gestão de Sebastião Melo, a entidade cobrou empenho do prefeito. Em reportagem da Matinal de 2022, o presidente do MJDH, Jair Krischke, destacou que Melo conhecia bem o projeto, já que era vice de Fortunati quando a iniciativa foi lançada.

Na época da reportagem, a demora foi justificada porque inicialmente o projeto havia sido cadastrado na Secretaria de Desenvolvimento Social, mas foi encaminhado para a Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMCEC), responsável pela conservação de monumentos em espaços públicos. Após o diagnóstico das peças, iniciado ainda em 2022, a pasta levantou orçamentos para a sua manutenção e a confecção de duas novas placas: uma para substituir a peça deteriorada em frente ao Central e outra para um novo local, a praça Harald Edelstam. O valor: R$ 4,5 mil.

O problema, informa a arquiteta Manuela da Costa, da diretoria de patrimônio e memória cultural da SMCEC, é que não há verba específica para o trabalho de manutenção de monumentos. Segundo ela, é um “tema difícil” que não se restringe ao projeto Marcas da Memória, que, pela peculiaridade das placas instaladas no chão, tem um desgaste esperado e demanda manutenção periódica. “Há a questão das pichações que afetam muitos monumentos. Não existe verba. É feito (trabalho de recuperação) pontualmente, nos casos mais urgentes, na maioria das vezes com financiamentos ou parcerias”, explica, e complementa que considera a iniciativa “um projeto importante para a memória da cidade”. 

Peça em frente ao Dopinho tem muitos trechos apagados | Foto: Geovana Benites/Matinal

Se os 4,5 mil não parecem muito, o que falta, na visão de Krischke, é vontade política – não só no caso das placas. Nesta semana, o MJDH esteve reunido com o prefeito para decidir o local que receberá a estátua de João Goulart, obra já finalizada e financiada pela Fundação Caminho da Soberania. A prefeitura havia sugerido que a estátua fosse instalada próximo ao Ministério Público. Mas lideranças de movimentos sociais defendem que a homenagem seja colocada em rótula próxima à Usina do Gasômetro, na avenida que dá nome ao presidente deposto em 1964. Local de maior visibilidade, o endereço fica em área concedida à GAM3 Parks, que será consultada em uma próxima reunião, conforme a Matinal mostrou nesta semana – lembrando a população sobre quem decide os rumos da cidade.

Na reunião desta semana, o secretário do MJDH, Afonso Licks, questionou Melo sobre a renovação do convênio do projeto Marcas da Memória, mas ficou sem resposta, diz Krischke. Ele conta ainda que ouviu de uma pessoa próxima da gestão de Sebastião Melo que o vice-prefeito, Ricardo Gomes, teria resistência em renovar o acordo. Os gabinetes de ambos foram procurados pela Matinal, mas as assessorias se limitaram a dizer que a pauta está com a Secretaria de Cultura.

Em nota enviada à redação, o titular da pasta, Henry Ventura, informa sobre o levantamento das condições das placas e o orçamento para melhorias e afirma que “a SMCEC reconhece o valor histórico deste projeto e avalia qual a melhor forma de garantir a manutenção periódica das placas, expostas a eventuais intempéries e atos de vandalismo”. Não foi informada nenhuma previsão para a realização dos trabalhos.

Uma eventual antipatia do vice-prefeito ao projeto não seria uma grande surpresa. Apesar de se dizer um defensor da liberdade, Gomes admira personalidades autoritárias como o presidente argentino Javier Milei, tanto que esteve presente na sua posse. Como prometido na sua campanha, Milei tem questionado o tratamento histórico dado à ditadura no país vizinho. No dia 24 de março, quando dezenas de milhares de argentinos foram às ruas para lembrar as vítimas do golpe militar que deixou milhares de desaparecidos e mortos há 48 anos, o presidente publicou um vídeo contestando dados divulgados por movimentos sociais, como o das Mães da Praça de Maio.

Remoer ou enterrar o passado?

Porto Alegre não é um caso isolado no Brasil, país que nunca puniu militares pelos crimes praticados na ditadura – e que no marco dos 60 anos do golpe ainda testemunhou o presidente Lula dizer que é melhor “não remoer o passado”, quando determinou que o governo não promovesse atos para relembrar a data.

Em todo o território nacional, a regra é deixar cair no esquecimento esse cruel episódio da nossa história. Reportagem da Agência Pública mostra que 233 locais serviram ao regime militar para torturar e violar gravemente os direitos humanos. Segundo o Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), responsável pelo levantamento, a maioria desses endereços não estão sinalizados. As exceções são o Memorial da Resistência em São Paulo, o Lugar de Memória (Lume) em Curitiba, o Memorial dos Direitos Humanos em Belo Horizonte e o Memorial da Resistência de Fortaleza – além das bravas placas do Marcas da Memória que, mal ou bem, ainda resistem nas calçadas de Porto Alegre.

Casarão na Santo Antônio abrigou o antigo DOPS | Foto: Geovana Benites/Matinal

A nova placa

A décima placa a ser afixada em Porto Alegre está prevista para a praça Harald Edelstam, localizada no Jardim Botânico. A área foi batizada em 2016 com o nome do diplomata Gustav Harald Edelstam, reconhecido pelo trabalho na defesa dos direitos humanos. Embaixador da Suécia em Santiago do Chile em 1972, dedicou-se a proteger refugiados da perseguição durante o golpe militar liderado por Augusto Pinochet em 1973, salvando vidas de chilenos, brasileiros e uruguaios. Também atuou durante a Segunda Guerra Mundial na Noruega ocupada pelos nazistas, trabalhando pelo salvamento de vidas de centenas de judeus e membros da resistência norueguesa. Diferentemente das peças anteriores que apontam locais de repressão pela cidade, esta homenagem se dedica a reconhecer o trabalho do diplomata.


Marcela Donini é editora-chefe da Matinal.
Contato: [email protected]

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