Carta da Editora

Um pesadelo que já dura 10 anos

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Um pesadelo que já dura 10 anos Intervenção nas ruas de Santa Maria em alusão aos 10 anos da tragédia da boate Kiss (Foto: Ariéli Ziegler/PMSM)

Três Copas do Mundo.
Um impeachment.
Quatro presidentes.
Uma pandemia.

Tudo isso aconteceu na última década, enquanto sobreviventes e familiares dos 242 mortos na tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, esperavam por uma justiça que ainda não veio. Pelo menos três pais dessas vítimas jamais verão o processo concluído – morreram neste período.

Há exatos 10 anos, eu pegava um ônibus de Porto Alegre rumo a Santa Maria. Cheguei por volta das quatro da tarde na cidade. Fui cobrir o caso para o site da revista Veja. Sempre que conto essa história, me perguntam: tu entrou no ginásio onde estavam os corpos?

Não, não entrei. Mas as imagens que testemunhei fora dele, no pátio da escola, foram, para mim, o retrato mais duro da tragédia: o desespero dos pais que saíam do tal ginásio depois de confirmarem o pior pesadelo na vida de quem tem filhos.

Toda vez que penso na Kiss, vejo de novo esses pais e mães, avós, irmãos, amigos e amigas, e os imagino presos naquele dia. Dez anos desejando despertar de um pesadelo.

Muitos transformaram a dor em luta, outros tantos adoeceram gravemente. Os lutos foram sendo elaborados cada um à sua maneira. Em paralelo, se desenrolava uma complexa investigação, que envolvia o município, o estado, os bombeiros, os donos da casa noturna e os músicos da banda. Um júri popular foi realizado em 2021 – e anulado oito meses depois. Antes, teve até familiares de vítimas sendo denunciados pelo Ministério Público (lembram disso?). E ainda tem gente que quer colocar um ponto final na dor dessas pessoas.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo desta semana, assinada pelo meu querido amigo Caue Fonseca, destacou justamente isso: a luta fora dos tribunais contra quem quer que a cidade esqueça da tragédia porque acha que já está na hora “de seguir adiante”. Sabe o que mais me impressiona? Quando eu retornei a Santa Maria para mais uma série de matérias um mês depois da tragédia, esse sentimento já começava a brotar, na contramão de uma onda de solidariedade muito bonita que se instalou na cidade imediatamente depois do incêndio. 

Empatia e memória

Ontem eu conversei com o prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom (PSDB), para saber como anda o clima na cidade neste janeiro tão doído. Falamos sobre esse desconforto de parte dos moradores e questionei como a prefeitura poderia colaborar para estimular mais empatia. Ele, que está em seu segundo mandato, não hesitou em apontar a construção do memorial como ação fundamental nesse processo de luto. 

“Em 2017, assumi o compromisso de desapropriar o prédio da Kiss para justamente construir o memorial. Na época, queriam mais de 4 milhões pelo prédio, mas conseguimos chegar a 1,2 milhão. Não adianta esquecer. Como diz o Gabriel (Gabriel Rovadoschi Barros, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas da Tragédia de Santa Maria), temos que ‘desfazer a ruína e construir a memória'”, afirmou o prefeito.

Frases e fotografias foram coladas até o prédio onde funcionava a Kiss (Fotos: Ariéli Ziegler/PMSM)

Deputado estadual na época, Pozzobom estava em Santa Maria naquele 27 de janeiro de 2013. Foi até a Kiss ainda na madrugada. Me disse que chegou a entrar na boate com um bombeiro – “uma atitude irresponsável, eu sei”. Perdeu parentes e filhos de amigos na tragédia. Por poucos minutos, sofreu a apreensão de tantos pais e mães que, nervosos, ligavam para seus filhos. A primogênita, Rafaela, tinha 16 anos na época e não estava em casa quando ele soube do incêndio. Felizmente ela atendeu. “Eu vivi tudo isso. Não tem como não ter empatia com essas famílias”, recorda.

Sobre as ações da prefeitura para prevenir novas tragédias do tipo, destacou o trabalho de fiscalização do município. “Hoje o foco absoluto é cuidar de locais de alto risco, como boate, bar com grande circulação de pessoas. Não quero que um fiscal meu vá fiscalizar um escritório de advocacia ou uma pet, só eventualmente.” Questionado sobre o tamanho da equipe e frequência das visitas, informou que o total de fiscais da prefeitura são 170, 35 dedicados às áreas de alto risco, mas não soube precisar a periodicidade das ações. “Fazem principalmente quando abre”, disse.

Também entrevistei Liliane Mello Duarte, capitão reformada da Brigada Militar e enfermeira. Foi a primeira mulher a entrar na Kiss naquela noite e coordenou o processo de identificação dos corpos. Entre 2017 e 2020, foi secretária da saúde de Pozzobom. Convido vocês a lerem a entrevista com ela aqui.

Sim, eu sei, a imprensa passou a semana inteira falando nisso, tem ainda duas séries que estrearam sobre a tragédia (Todo dia a mesma noite, na Netflix, e o documentário de Marcelo Canellas na Globoplay). Mas penso que é nosso papel manter o assunto vivo. Para que a gente não esqueça, para que nunca mais se repita.


Marcela Donini, editora-chefe do Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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