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O trabalho não liberta a mulher

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O trabalho não liberta a mulher

Na quarta-feira, assisti ao painel “Violência contra mulher: quando o empreendedorismo liberta”, promovido pela Federasul (leia a cobertura aqui). Vocês que me acompanham sabem que questões de gênero estão sempre no meu radar. Fiquei positivamente surpresa em ver o tema furando a bolha dos grupos feministas para chegar a uma entidade que alcança cerca de 80 mil empresas do RS. 

Depender financeiramente do companheiro é uma das razões para uma mulher não pôr fim a um relacionamento violento. Aí entra a pauta levantada pela Federasul, empreender para ser livre. Em teoria, faz todo o sentido. Mas, como diz bell hooks, não é o trabalho que liberta a mulher, é a autossuficiência econômica

Da mesma forma, o empreendedorismo não necessariamente vai ser sinônimo de liberdade para uma mulher. Este é, sim, um caminho viável: 48% conseguiram terminar uma relação abusiva depois de abrirem sua empresa, de acordo com a edição 2021 da pesquisa Mulheres Empreendedoras, do Instituto Rede Mulher Empreendedora (Irme).

Mas, antes de vender o empreendedorismo como um sonho dourado, é importante considerar que o caminho é duro, ainda mais para as mulheres. Historicamente, elas sofrem mais do que os homens para prosperar. De 2018 a 2020, houve queda de 25% nas empresas criadas por mulheres, enquanto a taxa entre as companhias pertencentes a homens caiu apenas 2,5%.

A dupla jornada é um dos grandes obstáculos para quem quer ser dona do próprio negócio. Dois terços das empreendedoras ouvidas na pesquisa do Irme 2022 têm filhos pequenos ou adolescentes. 

Um dado me chamou a atenção: 70% das entrevistadas que têm um CNPJ estão registradas como Microempreendedora Individual (MEI), formato com cobrança reduzida de imposto. Agora uma pergunta que a pesquisa não responde: quantas dessas microempreendedoras individuais abriram suas empresas para atuarem em um modelo cada vez mais comum no mercado, a pejotização? Quantas amigas ou mulheres da sua família estão hoje na seguinte situação: se submetem a horários e hierarquia rígidos, têm claramente um vínculo com a empresa para a qual, em tese, deveriam apenas prestar serviço, mas não ganham vale-refeição, FGTS ou qualquer outro benefício?

São como funcionárias sem direitos, mas estão aí, engordando as estatísticas de mulheres empreendedoras. A MEI pode ser a salvação, mas pode também ser sinônimo de precarização ou exploração.

Já vimos esse filme antes. 

De novo, cito O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras, de bell hooks: “Inúmeras mulheres se sentiram furiosas porque foram incentivadas pelo pensamento feminista a acreditar que encontrariam a libertação no mercado de trabalho. O que mais aconteceu foi se darem conta de que trabalhavam longas jornadas em casa e longas jornadas no emprego”. 

Ela segue: “Quando falamos em autossuficiência como libertadora em vez de trabalho precisamos dar o próximo passo e falar sobre qual tipo de trabalho é libertador. Claramente, empregos com melhor remuneração e horários flexíveis tendem a oferecer mais liberdade à trabalhadora.” 

Se para as feministas pioneiras – não por acaso brancas e de classes privilegiadas – entrar no mercado de trabalho significou liberdade, o mesmo não pode ser dito para tantas outras. Na pesquisa já citada, 38% das mulheres são de periferia e empreenderam por falta de opção, 41% não ganham o necessário para dar conta das despesas básicas da sua empresa. Seu faturamento médio? R$ 2,5 mil.

Contudo, sete em cada 10 mulheres estão otimistas e acreditam que, em 2023, seus negócios vão prosperar.

Eu, apesar de todas essas estatísticas que destaquei, também sou otimista. Como disse a deputada Nadine Anflor, também presente no evento, alguns anos atrás, ela sequer podia imaginar um painel na Federasul que abordasse o tema. Estamos evoluindo.

Foi importantíssimo ouvir a juíza Madgéli Frantz Machado lembrando ao público da Federasul que a Lei Maria da Penha protege a trabalhadora vítima de violência doméstica. Uma mulher nesta situação tem direito à manutenção do emprego por até seis meses se precisar se afastar do trabalho em razão da violência a qual está submetida. A questão foi reforçada pelo vice-governador, Gabriel Souza, que falou logo depois.

Ainda foi anunciado pelo presidente da entidade, Rodrigo Sousa Costa, a criação de um grupo de trabalho que terá a missão de criar oportunidades dentro das empresas e preparar medidas de acolhimento às mulheres vítimas de violência doméstica. 

Estamos evoluindo, é inegável. Mas é preciso estar atenta sempre.


Marcela Donini é feminista, antirracista e editora-chefe do Matinal.
Contato: [email protected]

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