Carta da Editora

¡Vamos Argentina!

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¡Vamos Argentina! Edmur (ao centro) preso pela Polícia Militar do RS, em 1970 (Reprodução Comissão Nacional da Verdade)

Essa não é uma carta sobre a Copa do Mundo, embora pudesse ser. Faço parte do grupo de brasileiros que não só torcem pela Argentina no futebol como têm motivos para admirar os hermanos para além das quatro linhas.

Vou te dar um: enquanto o desgoverno Bolsonaro, no apagar das luzes, trabalha para extinguir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), nossos vizinhos investigam o desaparecimento de um brasileiro pelas mãos das ditaduras militares do Cone Sul.

Em 16 de junho de 1971, Edmur Péricles Camargo embarcou no voo 153 da Lan-Chile de Santiago para Montevidéu, com escala em Buenos Aires. Ele realizaria um procedimento médico para tratar a visão, comprometida depois das torturas que sofreu nos porões do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. 

Conhecido como Gauchão, o jornalista nascido em São Paulo integrou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo liderado por Carlos Marighella. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nos anos 50, trabalhou na Tribuna Gaúcha, jornal do partido que circulava em Porto Alegre. Foi preso em 1970 com outros 13 companheiros depois da tentativa frustrada de sequestro do cônsul norte-americano na capital gaúcha. Acabou no Chile em janeiro de 1971, quando, junto a outros presos políticos, foi libertado em troca do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher.

Cinco meses depois, voltaria às mãos dos militares brasileiros. Capturado por autoridades argentinas, Gauchão foi entregue à Força Aérea Brasileira, que o levou até o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Depois que o avião da Lan-Chile pousou no Ezeiza, nos arredores da capital portenha, Edmur nunca mais foi visto. Até hoje ninguém foi responsabilizado pelo seu desaparecimento.

A esperança de um novo desfecho para essa história está nas mãos da Justiça Federal de Lomas de Zamora, na região metropolitana de Buenos Aires, que investiga o episódio a pedido de Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e do Prêmio Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel. “Eu tinha dúvidas se a justiça argentina aceitaria uma ação feita por um brasileiro, mas não só aceitaram como o juiz elogiou nosso argumento”, me disse Krischke.

O caso foi documentado pelo próprio serviço de inteligência brasileiro da época. Os documentos que embasaram a ação assinada por Krischke e Esquivel estavam disponíveis no Arquivo Nacional – inclusive a íntegra da carta que Edmur levava consigo para entregar ao ex-presidente João Goulart, o Jango, que vivia exilado no Uruguai.

Argentina à frente do Brasil 

Otimista, o ativista gaúcho acredita na justiça argentina, comprometida em esclarecer não só crimes da ditadura militar – fato bem ilustrado no filme Argentina 1985, resenhado aqui por Roger Lerina – como outras atrocidades até bem mais antigas – caso do Massacre de Napalpí, quando foram mortos mais de 400 indígenas (relembre aqui a entrevista que Luís Augusto Fischer fez com o advogado que atuou no caso, Duílio Ramírez). O genocídio ocorreu em 1924 e ficou conhecido como o primeiro “julgamento pela verdade”, único e nobre objetivo do processo, já que não era mais possível condenar os responsáveis pelos assassinatos. Não é razão suficiente para aplaudir os hermanos?

Já por aqui, como ressalta Krischke, somos o país mais atrasado da região nesse tema. Ele lembra que, até hoje, nenhum agente do Estado, civil ou militar, foi responsabilizado por crimes da ditadura. “Isso é uma vergonha”, diz. Em relação à decisão de extinguir a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, o ativista considera mais um capítulo da história que deveria constranger cada brasileiro. “A comissão funcionou bem até o momento em que assumiu o governo Bolsonaro. Eles não querem encontrar os responsáveis por esses crimes. Esses facínoras não se contentaram em eliminar aqueles que ousaram enfrentar a ditadura, também querem assassinar a memória. Não conseguirão”, diz, com a expectativa de que Lula revogue a decisão, caso Jair Bolsonaro confirme a extinção, que depende de um decreto seu.

Mais uma tarefa para o presidente eleito nessa árdua missão de salvar nossa fragilizada democracia.

Jornalismo revisto e projetado

Duas dicas para quem se interessa pelos rumos já trilhados e a trilhar do jornalismo brasileiro. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) completou em dezembro 20 anos. A data foi marcada com o lançamento do documentário Abraji 20 anos: de Tim Lopes a Dom Phillips.

Mirando o ano que se avizinha, o projeto Jornalismo no Brasil, produzido pela Abraji e pelo Farol Jornalismo (do qual sou uma das cofundadoras, junto ao Moreno Osório) chega a sua sétima edição. O especial reúne textos de jornalistas e pesquisadores que, para 2023, indicam que a profissão deve seguir vigilante às táticas de desinformação. Embora os profissionais possam respirar aliviados com o fim de um governo que tanto maltratou a imprensa, o bolsonarismo e suas ideias permanecem aí – inclusive com representantes nas Câmaras Municipais. Estamos de olho.

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Marcela Donini é editora-chefe doMatinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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