Diálogos Matinais

Uma rede de políticas e serviços multidisciplinares é necessária para atender a população de rua

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Uma rede de políticas e serviços multidisciplinares é necessária para atender a população de rua

Fique em casa! Frase repetida pelas mídias, sugerida por profissionais da saúde, em campanhas mundiais de isolamento social, em época de pandemia do coronavírus. Medida principal, considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), para dirimir riscos de contágio da Covid-19. Fique em casa! E quem não tem casa, como faz? 

A última pesquisa censitária que aconteceu em Porto Alegre, em 2016, numa parceria feita pela Universidade Federal do RS (UFRGS) e pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) com a participação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) apontou o número de 2.115 pessoas vivendo em situação de rua na cidade. Sabemos que esse número é uma média obtida a partir dos territórios onde tal pesquisa conseguiu chegar, mas, é fato que ele é bem maior – estima-se ser o dobro disso ou até mais. Tal dado já encontra-se desatualizado, e a pandemia, provavelmente, levará mais pessoas a ficarem sem ter onde morar. Nos cadastros de alguns serviços que atendem a esse público, esse número supera 2 mil pessoas. E há ainda aqueles que não acessam nenhum desses serviços.

Nesse momento de crise sanitária, a situação dessa população se agudiza pela precarização das políticas públicas, pela descontinuidade de serviços parceirizados, pela crise pandêmica evidenciar mais ainda o “não lugar” delas na cidade e por programas de governos que oferecem cada vez menos recursos. O Instituto Brasileiro Geográfico de Estatísticas (IBGE) não tem um programa nacional que inclua a contagem das pessoas que vivem a rualização no Brasil. Se elas não são contadas, é pouco provável que apareça a necessidade da criação de políticas públicas para atender suas demandas. Por isso, se faz muito importante que existam censos feitos nas cidades e nos estados. Porto Alegre precisa atualizar o censo, principalmente, após a pandemia. 

É interessante trazer um dado obtido por representantes do MNPR, numa audiência pública em 2015 e sobre moradia, revelado por um promotor público da habitação, do Ministério Público do RS. Na ocasião, ele disse que existiam, apenas em Porto Alegre, 48 mil imóveis abandonados, desses, 6 mil são públicos. Ou seja, prédios, terrenos e outros imóveis ociosos há muitos anos e distribuídos pelas diversas regiões da cidade. Se esses imóveis fossem destinados para fins de moradia popular, essa seria uma forma efetiva de inclusão das pessoas em situação de rua na política de habitação. Ao contrário disso, o que presenciamos são políticas inconsistentes de moradia, como a dos aluguéis sociais. Muitas vezes apresentadas com um nome pomposo e estrangeiro como: “House First”, lançadas como inovação pelos governos, mas que trazem os velhos problemas da descontinuidade, fazendo com que as pessoas retornem para as ruas.

É importante ressaltar que esse público é muito heterogêneo e é um conjunto de fatores que leva as pessoas a viverem nas ruas, isso significa que há uma grande complexidade colocada aí. A desigualdade social pode ser considerada o pano de fundo. A inclusão em moradia requer trabalho e renda para que se possa manter e sustentar uma casa. Por isso, também são necessárias políticas nesse sentido. Uma melhor oportunidade de trabalho costuma se relacionar com o nível de escolaridade, que dessas pessoas é bastante baixo. Muitos dos imóveis ociosos poderiam reunir: moradia, associativismo, programas de cooperativismo, economia solidária, construídos com o público em questão. Nessa possibilidade, poderiam ser incluídas também as pautas das questões de gênero, das mulheres, do cuidado com os filhos e do fortalecimento de vínculos comunitários.

Existem pessoas morando nas ruas que possuem necessidades específicas – relacionadas à saúde mental por exemplo – que foram abandonadas pelos familiares ou que não possuem família. Essas vão precisar de acolhimento a partir das suas singularidades. Talvez possam não dar conta de sustentar uma casa com tudo o que isso requer. Os residenciais terapêuticos, que são lares com equipes mínimas de saúde, locais substitutivos aos manicômios, que proporcionem o estímulo à autonomia e ao autocuidado, nesses casos, são os mais indicados. Para as pessoas que fazem uso abusivo de álcool e de outras drogas, é necessário que exista uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) forte, que trabalhe articulada com outras políticas: assistência social, educação, geração de renda e trabalho, saúde básica, consultórios na rua, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a fim de apoiar essas pessoas no aprendizado de lidarem com seus próprios usos, a fortalecer a autonomia e o protagonismo na tomada de suas próprias decisões na vida. Primar aqui por serviços públicos, laicos e de qualidade é fundamental.

Em relação aos direitos mais amplos de uso da cidade, muito ainda há que se avançar na inclusão desse público. Em época de pandemia e de forma permanente, é preciso que a cidade disponha de acesso a água potável, banheiros públicos, cozinhas comunitárias e bagageiros populares para guardar pertences, acabando assim com as práticas de retirada dos poucos recursos materiais dessas pessoas, que os carregam para a sua sobrevivência diária. Alguns agentes públicos enxotam esses indivíduos de diversos locais, retirando deles documentos, receitas médicas, remédios, etc. Fazem um desserviço, já que a mesma prefeitura dispõe de outros serviços, que atendem a esse mesmo público, com a concepção de inclusão nas diversas políticas públicas. Muitas vezes, são as equipes de aproximação social, seja da assistência ou da saúde, que ajudam essas pessoas a encaminhar documentação e outras questões.

O acompanhamento é um processo, não tem um caráter de “retirar” as pessoas das ruas num primeiro momento, como se fossem “coisas”. É preciso fazer um vínculo com elas, escutar cada história e pensar as possibilidades junto delas. Ninguém está nas ruas porque quer! Há muita violência direcionada a essas pessoas nas ruas. As mulheres em situação de rua sofrem mais ainda, o público LGBTQI+ também. Atualmente, os serviços da assistência social totalizam menos de 500 vagas em Porto Alegre. Isso quer dizer que, se todas as pessoas que estão em situação de rua quiserem ir para um espaço de acolhimento institucional, não haveria vagas suficientes. 

Por fim, é necessário que se pense no recorte racial, pois a maioria dessas pessoas é negra ou parda. Não há como falar de pessoas em situação de rua sem falar do racismo como fator principal. Considerar a necropolítica que Achille Mbembe fala. Questionar sobre essas vidas que parecem “valer menos”, sobre que corpos matáveis são esses, os quais o sistema capitalista e sua necropolítica permitem morrer. Provavelmente, reconhecer nosso lugar de privilégios seja um passo importante para lutarmos juntos pelas transformações necessárias. 


Veridiana Farias Machado. Educadora social, trabalha há 19 anos no atendimento às pessoas em situação de rua em Porto Alegre. Atua também como redutora de danos, é estudante de Psicologia na Unisinos – POA e apoiadora militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua do RS (crédito da foto: CRP-RS).

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