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Brasil é denunciado em órgão internacional por negligência em dois hospitais psiquiátricos gaúchos

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Brasil é denunciado em órgão internacional por negligência em dois hospitais psiquiátricos gaúchos Caso do Hospital Psiquiátrico São Pedro foi denunciado à CIDH no ano passado )Créditos: Jean Maidana/Governo do RS)

Segundo autores do pedido de medida cautelar, o governo de Eduardo Leite não tomou providências para conter o avanço da Covid-19 nas instituições psiquiátricas. Ao menos nove pacientes morreram com coronavírus.

O Brasil está sendo denunciado hoje na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em Washington, Estados Unidos. O pedido de medida cautelar foi protocolado pelo Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) em razão da gravidade sanitária de dois hospitais psiquiátricos da região metropolitana de Porto Alegre: o Hospital Psiquiátrico São Pedro, no bairro Partenon, e o Hospital Colônia de Itapuã, em Viamão. 

É a quinta denúncia internacional contra o Brasil relacionada à crise do coronavírus, mas a primeira a envolver o Rio Grande do Sul. Se julgar procedente a denúncia contra os hospitais psiquiátricos, a CDIH vai exigir medidas para solucionar o problema para o governo brasileiro, que as repassará ao governo gaúcho. A CIDH é o órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) encarregado de fiscalizar as violações contra os direitos humanos no continente.

Segundo as denúncias, feitas por funcionários e pacientes, a estimativa é que pelo menos 80% dos pacientes estejam contaminados com Covid-19. Os trabalhadores dos dois hospitais reclamam de falta de equipamentos de proteção individual, materiais de higiene e de limpeza e da ausência de protocolos sanitários para conter os surtos da doença nesses locais. Ao menos nove pessoas já morreram com o vírus – cinco no Colônia de Itapuã e quatro no São Pedro, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES). 

Somente na semana retrasada, após mais de quatro meses de alertas do FSGM, a SES realizou 65 testes em pacientes do São Pedro, e 32 deram positivo para o novo coronavírus. Até o momento, 12 servidores do hospital estão afastados com confirmação de Covid-19. Ambas instituições são públicas e estão sob responsabilidade do governo de Eduardo Leite, mas quem assume as obrigações no âmbito jurídico internacional é o Estado brasileiro. 

“Desde março, fazemos pedidos ao poder público para que tome providências em relação aos hospitais psiquiátricos. A SES nunca deu respostas nítidas para o controle social, nunca foi transparente sobre o tipo de contingência adotada”, critica o psicólogo Rafael Wolski, membro do FGSM e ex-coordenador da área de moradia do São Pedro entre 2011 e 2014. “Recebemos a informação de que quatro desses moradores que morreram no Colônia de Itapuã foram enterrados no cemitério do próprio hospital. Esses que morreram em função da Covid-19 são os que foram testados. Mas a gente não sabe se teve gente que morreu e não foi testada”, pontua. 

O Matinal entrou em contato com a Secretaria Estadual de Saúde, que respondeu que “todos protocolos foram adotados para prevenção e tratamento e constam no plano de contingenciamento de cada hospital”. Além disso, acrescentou que “não há falta de equipamentos” e que, no Hospital São Pedro, “há testes rápidos de anticorpos e RT-PCR disponíveis”. O órgão não se pronunciou sobre a reposição de funcionários afastados, nem sobre o funcionamento do cemitério no Hospital Colônia de Itapuã, tampouco informou quantos pacientes moram nos hospitais São Pedro e Itapuã. A reportagem também entrou em contato com o Ministério Público do Rio Grande do Sul, que informou que abriu um expediente na promotoria dos direitos humanos de Porto Alegre, no dia 4 de agosto, sobre a situação do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Os promotores pediram explicações à direção da instituição psiquiátrica, que tem mais dois dias úteis para responder. No caso do Hospital Colônia de Itapuã, o MPRS disse que a instituição “prestou os esclarecimentos devidos” e que estão aguardando o retorno do Conselho Estadual de Saúde para possíveis novos encaminhamentos, “incluindo eventual provocação para realização de vistoria pela Vigilância Sanitária”.

Em 17 de julho, a CIDH já havia concedido medida cautelar contra o governo brasileiro. A decisão foi relativa ao caso do povo Yanomami, habitante da fronteira entre o estado de Roraima e a Venezuela, em riscos de contaminação pela Covid-19 devido a incursões de garimpeiros ilegais nas áreas. Ao longo da história, o Brasil já foi condenado em nove casos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), entidade judicial ligada à CIDH, mas sem vinculação com a OEA.

A medida cautelar é um dispositivo legal para antecipar os efeitos de uma decisão judicial. Geralmente, é usada quando a demora habitual no julgamento de uma ação pode causar prejuízos para uma das partes. 

O próprio presidente Jair Bolsonaro é alvo de cinco representações no Tribunal Penal Internacional, mais conhecido como Corte de Haia. Os pedidos acusam Bolsonaro de crimes contra a humanidade e genocídio, principalmente pela incitação de ataques contra populações indígenas e pela sua atuação irresponsável diante da pandemia de coronavírus.

No caso dos hospitais psiquiátricos, as alegações que pesam contra o governo também se baseiam na negligência durante a crise sanitária, ainda que os problemas na infraestrutura venham desde muito antes. “Fizemos um levantamento da estrutura desses locais e constatamos que já havia um déficit na gestão hospitalar. Agora, muitos trabalhadores dessas instituições foram afastados por suspeita de Covid-19 ou por integrarem o grupo de risco e não foram repostos”, diz o advogado Marcelo Azambuja, responsável por ingressar com o pedido no órgão internacional. “No São Pedro, sequer há uma comissão de óbitos”, destaca. Segundo uma resolução de 2017 do Conselho Federal de Medicina, todas as unidades hospitalares têm a obrigação de constituir comissões de revisão de óbito para avaliar as mortes ocorridas nesses locais. 

Luta antimanicomial

Inaugurado em 1884, o Hospital São Pedro passou por obras em 2013 e segue funcionando, apesar da reforma psiquiátrica que, há quase três décadas, previu a substituição de instituições com essa finalidade. Foto: Rafael Cabeleira/Governo do RS

O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado brasileiro a fazer uma reforma psiquiátrica, em 1992. A nova lei teve o objetivo de mudar práticas autoritárias, como a internação compulsória de pacientes. O texto previa que os hospitais psiquiátricos fossem substituídos gradualmente por uma rede de atenção sanitária e social – que deveria incluir serviços de assistência psicossocial, centros de convivência, ambulatórios e emergências psiquiátricas em hospitais gerais. A ideia era que os pacientes fossem ressocializados e não ficassem trancados para o resto da vida nos hospitais. Em 2001, a reforma psiquiátrica foi instituída em âmbito nacional

Apesar do pioneirismo gaúcho, a chamada luta antimanicomial, encampada por diversas entidades civis, sofreu pressão de categorias médicas contrárias, como a própria Associação Brasileira de Psiquiatria. “Tem muita resistência da psiquiatria mais tradicional e também do mercado. O leito e a internação psiquiátrica privada são muito lucrativas, assim como os medicamentos. E tem uma cultura na sociedade que também precisa de reforma para lidar melhor com a loucura”, diz a psicóloga Maria de Fátima Fischer, ex-funcionária do Hospital São Pedro e diretora do processo de desinstitucionalização de pacientes entre 2011 e 2014.

Segundo conta a psicóloga, que chegou a ser estagiária do hospital na década de 1970, era comum que as instituições psiquiátricas tivessem celas fortes para trancar pacientes, aplicação desmedida de eletrochoque, isolamento total e nenhum tipo de atividade ao ar livre. “Nessa época, havia uma forte negação sobre a morte. A pessoa morria e desaparecia. É essa sensação que eu tenho agora”, lembra. “Recentemente, houve a remoções de pacientes desses hospitais, mas não sabemos exatamente o que está acontecendo. Essa falta de transparência nos apavora. Se estivessem fazendo uma política adequada de saúde, não teria por que esconder.” 

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