Reportagem

Com Lula no Mercosul, Rio Grande do Sul pode ganhar papel estratégico

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Com Lula no Mercosul, Rio Grande do Sul pode ganhar papel estratégico Luis Alberto Lacalle Pou, Presidente do Uruguai, em visita ao Brasil em 2021 | Foto: Marcos Corrêa/PR

Lula assume a presidência do bloco nesta terça (4 ) com o desafio de destravar negociações com a União Europeia. Mas tentativas de acordos do Uruguai com a China vêm abalando a unidade do Mercosul. Como único estado brasileiro que faz divisa com o Uruguai, RS tem papel central na missão de “amarrar” o país no bloco

Três décadas após sua fundação, o Mercosul enfrenta o princípio de uma crise. A instabilidade é causada por tentativas do Uruguai, o menor país em território do bloco, de estabelecer negociações com a China sem a participação dos outros membros. Nesse contexto, o Rio Grande do Sul, único estado brasileiro que faz divisa com o Uruguai, pode ser essencial para estreitar as relações do Brasil com o país vizinho, evitando o rompimento do bloco econômico.

Para entender como o RS pode reintegrar o Uruguai ao Mercosul – e se beneficiar da relação com o país vizinho –, o Matinal conversou com Luiz Augusto Estrella Faria, professor de Economia Política e Economia Internacional da UFRGS.

Oficialmente, nenhum país do Mercosul pode negociar sozinho – sem consultar o restante do bloco – com outros países. “O Mercosul é uma união aduaneira, isso quer dizer que os países negociam em conjunto e nenhum tem política comercial própria”, explica Faria. Mas é exatamente isso que o Uruguai vem tentando fazer: o presidente, Luis Lacalle Pou, confirmou em janeiro que estava avançando em um Tratado de Livre Comércio com os chineses. Esse acordo poderia simbolizar tarifas aduaneiras menores do que aquelas encontradas pela China nos outros membros do Mercosul, convertendo os uruguaios, na prática, em concorrentes do próprio bloco. “Se o Uruguai fizer um acordo com a China, ele automaticamente está fora do Mercosul porque isso é vedado pelo tratado do bloco”, afirma o professor.

Diante da rebeldia uruguaia e com o Brasil outra vez sob um governo simpático ao fortalecimento do Mercosul, o RS pode ter um papel estratégico, devido à grande interdependência comercial entre o estado e o país localizado logo abaixo no mapa. Hoje, a principal conexão do RS com o Uruguai é o setor agropecuário. “Muitos empresários daqui plantam também no Uruguai”, explica Faria. 

Em setembro do ano passado, durante a 45ª Expointer, realizada em Esteio, Brasil e Uruguai assinaram um memorando em defesa da agropecuária entre os dois países. O principal objetivo do acordo é promover a colaboração técnica entre os profissionais que atuam na produção, transporte e comércio de produtos agrícolas. O memorando também visa estabelecer mais ações de fiscalização para o trânsito internacional desses produtos.

Dados de 2021 publicados na última Radiografia da Agropecuária Gaúcha, elaborada pela Secretaria da Agricultura do RS, mostram que 21% das importações de produtos agropecuários do estado vêm do Uruguai. Sem produção própria, mas com um elevado consumo do produto, o país vizinho é o principal destino da erva-mate gaúcha: compra 77% das exportações do RS, tendo gerado US$ 52,9 milhões para o estado em 2021.

O Uruguai também é um dos principais destinos da carne bovina de origem gaúcha. Em 2021, o país comprou US$ 20,2 milhões desse produto, representando 6,6% das exportações do RS. No mesmo ano, o Uruguai foi o terceiro maior importador de produtos lácteos do Rio Grande do Sul, gerando US$ 2,3 milhões. Ao mesmo tempo, o estado importou mais de 20 mil toneladas de lácteos do país vizinho, o que representa 95,7% das importações de leite e derivados.

Outro fator que o RS e o Uruguai têm em comum é que ambos são importantes polos do setor de tecnologia da informação (TI). “Há uma oportunidade muito grande de cooperação ganha-ganha do cluster (aglomerado) de TI do Uruguai com o do RS”, diz Faria. Para o especialista, é importante manter a produção industrial do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec) – localizada em Porto Alegre, a estatal é a única produtora de chips e semicondutores na América Latina.

A Ceitec foi fundada em 2008, no segundo mandato de Lula, mas acumula prejuízos. Em 2020, o então presidente Jair Bolsonaro deu início ao processo de extinção da estatal. No entanto, a liquidação da Ceitec foi travada por decisões do Tribunal de Contas da União (TCU), com base em indícios de irregularidades no processo. Agora que Lula retomou o governo, o presidente criou um grupo interministerial para reverter a extinção da empresa. “É preciso mobilizar toda a inteligência que seria perdida com o projeto de extinção da Ceitec. Isso opera positivamente com o desenvolvimento do setor de TI no Uruguai”, explica Faria. 

Obras para estreitar relações comerciais

Logo no início de seu terceiro mandato como presidente, em agendas oficiais na Argentina e no Uruguai, Lula anunciou obras que ligarão o RS aos dois países vizinhos. A construção de uma nova ponte ligando a cidade gaúcha de Jaguarão a Rio Branco, no Uruguai, foi um dos compromissos assumidos. A ponte que já existe sobre o rio Jaguarão tem mais de 90 anos e, nesse meio tempo, o fluxo de cargas pesadas entre os dois países vem aumentando consideravelmente.

Outra obra anunciada é uma hidrovia, prevista para sair de um porto no Rio Tacuarí, no Uruguai, próxima à fronteira com a cidade gaúcha de Jaguarão. O curso com extensão total de 220 quilômetros chegaria até o Porto de Rio Grande. O Ministério dos Portos e Aeroportos, criado neste terceiro mandato de Lula, está analisando duas propostas de consultorias interessadas em aprimorar os projetos técnicos da obra – a melhor proposta será contratada pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). As etapas de licitação, licenciamento e obras de dragagem começam só depois da finalização dos projetos técnicos.

“Esse projeto de transporte pluvial é muito importante, porque temos um sistema de lagoas. A Lagoa Mirim é o centro desse sistema, importante para o transporte no sul do RS e para a região do nordeste do Uruguai”, explica Faria. 

Alguns projetos estão até mais avançados em relação à Argentina: por exemplo, já foi concluída a restauração da ponte internacional Getúlio Vargas-Agustín Pedro Justo, entre as cidades de Uruguaiana e Paso de Los Libres, no lado argentino. Entregue em 31 de março, a ponte deve propiciar o aumento das trocas comerciais entre os dois países. 

Das obras ainda em construção, a mais próxima da conclusão é outra ponte, que ligará a cidade de Porto Xavier, no noroeste gaúcho, a San Javier, na Argentina. Atualmente, a ligação entre as cidades é feita por uma balsa que funciona de segunda-feira a sábado. Além de não funcionar aos domingos, o serviço é refém do regime de chuvas: a travessia fica prejudicada quando o nível do rio sobe ou desce. Pela fronteira do município de Porto Xavier, passam importações e exportações de alimentos, maquinário e material de construção.

Lula também mencionou a possibilidade de o BNDES financiar o gasoduto Presidente Néstor Kirchner, que atualmente está sendo bancado pela Argentina. O primeiro trecho, que está em processo de construção, transportará gás por 583 quilômetros entre as cidades argentinas de Tratayén e Saliquelló. O intuito de Lula com o possível financiamento da obra é garantir a chegada do gás argentino ao Brasil, por meio da fronteira gaúcha, mas ainda não existe uma tramitação formal para o investimento no país. Para a GZH, o BNDES afirmou que “não existe demanda ou previsão de financiar projeto de serviços de infraestrutura no Exterior”.

No entanto, apesar de avanços no transporte rodoviário e hidroviário nas relações com os dois vizinhos, o professor considera mais urgente retomar o transporte ferroviário. “Até hoje, não existe de forma operacional e eficiente uma interligação do modal ferroviário com Uruguai e Argentina”. Segundo Faria, essa ligação seria importante para baixar o custo do transporte de mercadorias para os países vizinhos, já que Uruguai e Argentina têm uma malha ferroviária consolidada. 

Atualmente, o modal ferroviário representa cerca de 6% da matriz de transportes no RS. Dados do último Atlas Socioeconômico, publicado em 2020, mostram que o estado possui uma malha de aproximadamente 3,2 mil km de linhas e ramais, dos quais cerca de 1,5 mil estão desativados ou suspensos. Os trechos em funcionamento são utilizados quase exclusivamente para o transporte de cargas.

A malha ferroviária do estado foi concedida em 1997 à empresa América Latina Logística (ALL), que até 2013 detinha também áreas de concessão do norte da Argentina. Em 2015, a ALL foi absorvida pela empresa Rumo Logística. A operação pela empresa, prevista para ir até 2027, é chamada de Rumo Malha Sul.

“O governo do RS deveria coordenar esse trabalho de desenvolvimento da nossa infraestrutura econômica”, defende Faria. “Um governo super privatista como o que temos, com Leite, tende a achar que o setor privado é que tem que fazer a infraestrutura. Isso é um equívoco imenso. O setor ferroviário foi privatizado e diminuiu: uma série de linhas foram desmontadas”, afirma. 

A importância de manter a unidade do Mercosul

A insatisfação do Uruguai com o Mercosul tem a ver com o fato que o país, o menor em território e população do bloco que integra ao lado de Argentina, Brasil e Paraguai (que também tem a Bolívia como estado associado e a Venezuela como membro pleno, porém atualmente suspensa do grupo), não tem uma economia de peso se comparado aos demais. “Isso faz com que o Uruguai precise estar sempre ‘valorizando o passe’, se não ele fica esquecido”, explica Faria. 

Além disso, como não conta com a mesma estrutura industrial da Argentina e do Brasil, o Uruguai vê vantagem em uma maior liberalização comercial, enquanto os dois outros países são relutantes em abrir seus mercados por causa de uma pressão do setor industrial.

Segundo Faria, a criação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) – onde principalmente Brasil e Argentina depositam recursos, enquanto o Uruguai retira dinheiro para financiar obras e infraestrutura – é resultado de uma mobilização do país para tornar o Mercosul mais vantajoso para si. Criado no final de 2004, o FOCEM opera por um sistema de contribuições e distribuição de recursos de forma inversa: os países do bloco com maior desenvolvimento econômico relativo realizam contribuições maiores e, por sua vez, os países com menor desenvolvimento econômico relativo recebem os maiores recursos para o financiamento de seus projetos. 

Em janeiro, Lula foi a Montevidéu com a missão de evitar o acordo entre Uruguai e China – segundo o professor Luiz Faria, a visita foi bem-sucedida. “É importante preservar a unidade do Mercosul. Mas o Uruguai teria mais a perder do que a ganhar saindo do bloco”, afirma. 

De certo modo, o próprio governo uruguaio reconhece que a negociação conjunta tende a ser mais benéfica no longo prazo, mas vem pressionando por discordar das taxas alfandegárias que existem atualmente. “A decisão uruguaia é avançar com um Tratado de Livre Comércio. Se for com o Mercosul é melhor, todos sabem da força que (os países do bloco) podem ter juntos”, reconheceu o presidente Luis Lacalle Pou em janeiro, deixando as portas abertas tanto a uma negociação conjunta quanto à sequência das conversas independentes.

O Mercosul como um todo também seria prejudicado na saída do Uruguai: a política atual do bloco é de ampliação. Atualmente, a Bolívia está em estágio avançado de negociação para deixar de ser um estado associado e passar a fazer parte como membro pleno do Mercosul – falta apenas a aprovação do Congresso brasileiro para tanto. 

A relação com outros países sul-americanos, com Lula na presidência, deve ser “radicalmente diferente” de como era com Bolsonaro, afirma Faria. “O governo anterior virou as costas para a América do Sul. Queria desenvolver relações com os Estados Unidos e a Europa Ocidental. Como era um governo que não tinha política industrial, o fato de a nossa indústria precisar do mercado da América do Sul não era importante para Bolsonaro”, afirma.

Uma das primeiras medidas que Lula tomou na direção contrária da postura do ex-presidente foi providenciar a volta do Brasil à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), formalizada em 6 de abril. Em 2019, Bolsonaro havia retirado o Brasil da organização, estabelecida em 2008 para ser um espaço de “integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político” entre seus países-membros. Um dos objetivos da Unasul é eliminar a desigualdade socioeconômica na região.

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