Reportagem

“Se ninguém mais comprar, o furto de cabos vai parar”, diz delegada que comanda investigações no RS

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“Se ninguém mais comprar, o furto de cabos vai parar”, diz delegada que comanda investigações no RS Mais de 11 mil metros de fios já foram furtados em semáforos neste ano, segundo a EPTC. | Foto: Gustavo Roth / EPTC

Dependentes químicos em busca de dinheiro são os principais autores do furto de fios de cobre em vias públicas no RS, mas apenas a face mais óbvia do problema. Para a delegada Vanessa Pitrez, diretora do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), é preciso desarticular a rede de receptação do metal

Semáforos, postes de energia elétrica e de telefonia são alvos constantes de furto porque funcionam a partir de fios de cobre, um material altamente valorizado. Este tipo de crime, que se tornou endêmico no estado, causa inúmeros transtornos às cidades e prejuízo às empresas. 

Somente em Porto Alegre, mais de 11 mil metros de fios já foram furtados em semáforos neste ano, de acordo com a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Foram  168 ocorrências entre janeiro e abril de 2023. A quantidade de cabos furtados é quase o triplo do que há dois anos. A CEEE Equatorial, concessionária de energia do estado, contabilizou uma perda de  71,4 quilômetros de cabos na capital em 2022, que deixou às escuras quase 1 milhão de clientes em algum momento do ano. 

Delegada Vanessa Pitrez, diretora do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC). Foto: Divulgação

Para entender como se articula a rede por trás do furto e como a polícia vem atuando para enfrentar este tipo de crime, o Matinal conversou com a delegada Vanessa Pitrez. Desde fevereiro deste ano, ela dirige o Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), que tem uma delegacia especializada nesse tipo de crime.

Confira a entrevista na íntegra:

O furto de fios de cobre é um fenômeno antigo ou mais recente? E por que se tornou endêmico agora?

É uma prática que já ocorre há bastante tempo. Temos, aqui no DEIC, desde 2005 uma delegacia especializada que trabalha só com esse tipo de crime. Essa prática vem aumentando diante da facilidade da subtração desses fios e da pena baixa que se aplica àquele que os furta. Não é um caso de roubo, não tem violência nem ameaça. São casos de furto onde a pena prevista é muito baixa, não existe uma viabilidade prática de se manter esse indivíduo preso por causa dos benefícios legais de que o crime goza. Na maioria das vezes, o furto é praticado por usuários de drogas, dependentes químicos em estágio avançado que se utilizam desse crime para ter uma moeda de troca.

Existe uma média regular [de furtos], mas esse ano, principalmente em Porto Alegre, a gente observou um aumento inclusive no furto de fios e cabos de semáforos. É pela facilidade de se arrancar os fios que ficam suspensos em postes, para muitos é de fácil acesso.

O que as investigações do DEIC dizem sobre a rede por trás dos roubos de fios? Existe um perfil definido de quem compra esse material, para quê e para quem vende? 

Temos várias investigações em andamento com foco em desarticular essa rede, esse mercado paralelo que se criou, em relação a comercialização de fios e cabos de origem ilícita. As investigações têm focado mais na busca, identificação e coleta de provas contra os receptadores. Aquele que recebe esse fio furtado para revender é enquadrado no crime de receptação qualificada, que tem uma pena bem maior que a do furto, de no máximo oito anos, enquanto a pena para furto é de no máximo quatro. Por meio deuma boa coleta de provas, o DEIC consegue identificar essas pessoas e efetuar as prisões desses receptores com um pouco mais de garantia que eles vão permanecer presos.

A rede vai desde aquele que furta os fios e repassa para um pequeno receptador – que muitas vezes remanufatura o cobre, derrete e faz uma nova fiação, depois tenta inseri-la no mercado de forma descaracterizada, vender o cobre para empresas que vão utilizar esse material, até para as próprias concessionárias do serviço público, para inserir esse material de maneira lícita no mercado através de terceiros de boa-fé. 

Também temos notícia do envio desse material para outros estados e outros municípios, onde eles também serão revendidos, seja nesse mercado paralelo ou tentando descaracterizar a origem ilícita.

Os receptadores normalmente são donos de pequenos, médios e até grandes estabelecimentos comerciais que trabalham no ramo, normalmente ferro-velho.

O que se sabe da relação entre o roubo de fios e o tráfico de drogas?

No DEIC, não temos nenhuma investigação que indique facções vinculadas ao tráfico de drogas como sendo os receptadores desse material. A gente vincula o tráfico porque ele fomenta [esse mercado] através da dependência química. O furto de fios é uma forma do usuário de drogas ter uma moeda de troca, pela facilidade de obter dinheiro através da venda desse material para compra de drogas e para sustentar seu vício.

Embora a grande maioria dos ladrões seja usuário de drogas, eles [às vezes] são pessoas que já trabalharam em empresas de energia e têm a expertise para furtar. Dispõem de equipamento e roupas. 

Quais outros crimes estão envolvidos nessa cadeia?

Tem a questão do roubo, em alguns casos. Roubo de cargas de bobinas de cobre, das próprias concessionárias de serviço público, nos locais de armazenamento. Alguns casos envolvem o roubo a esses estabelecimentos, mas os principais crimes investigados pelo DEIC são o furto e a receptação qualificada do material.

Como tem se dado o combate a esse crime? E a prevenção dele? 

A gente tem trabalhado isso de várias formas. O furto dos cabos ocasiona um dano expressivo para a sociedade, em que as pessoas, os estabelecimentos de saúde, comerciais e de ensino ficam sem a rede elétrica, a própria segurança no trânsito fica ameaçada quando os semáforos ficam desligados. Diante de todos esses danos que o crime ocasiona, temos trabalhado muito com a integração entre todas as entidades, instituições e empresas que tenham relação com o cenário. Sempre em parceria com as concessionárias [de energia], com a prefeitura municipal, com a Secretaria de Segurança Pública (SSP). Criamos uma força-tarefa sob a coordenação da SSP que envolve o Instituto Geral de Perícias (IGP), a Brigada Militar (BM) e outros agentes que trabalham nesse cenário. Para fim de coibir, fiscalizar e intensificar as ações preventivas.

Como são as ações preventivas?

A gente trabalha, especialmente por parte da BM, com o policiamento ostensivo nas áreas onde se observa maior incidência do furto da fiação de energia e telefonia, a fim de evitar que o crime ocorra. Além disso, a fiscalização constante nos estabelecimentos acaba por inibir um pouco o delito.

Por outro lado, a gente acredita que todos devem contribuir. As concessionárias devem buscar uma maneira de proteger mais esse material para evitar que ele seja subtraído. Também deve ser fomentada a criação de novas leis para maior rigor fiscalizatório nesse tipo de atividade, da mesma forma que acontece com os desmanches que recebem peças de veículos, para haja um cadastro e que sofram penalidades como multa e fechamento do estabelecimento [em caso de receptação dos cabos]. Existe uma fiscalização que nós fazemos, junto com a prefeitura, mas a gente ainda carece de uma legislação que tenha um regramento mais rigoroso para esse tipo de comércio. 

Os ladrões de fios são, em sua grande maioria, usuários de drogas. Além da prisão, existe algum protocolo para o acompanhamento e tratamento dessas pessoas?

Não, a lei não prevê [esse protocolo]. A lei prevê esse tratamento quando o indivíduo é flagrado e é detido como usuário de droga. Nesse caso, o crime que está sendo imputado a ele é o furto, e a lei não prevê como sanção ou requisito nenhum tratamento ou obrigação relacionada a sua dependência química. Há outras modalidades de penas alternativas que podem perpassar por um tratamento, mas não existe uma previsão legal específica.

Você acredita que a prevenção não deva também envolver uma política de saúde pública?

A questão da drogadição de uma maneira geral está muito vinculada à política antidrogas, e não à política que visa inibir esse tipo de furto. Existe, sim, uma mobilização, em termos de políticas públicas nacionais, para o tratamento de dependentes químicos no âmbito da saúde pública. Mas isso não é uma atribuição e responsabilidade da polícia civil.

Qual a dificuldade para combater os receptadores que estão por trás desse sistema?

Temos intensificado tanto as nossas ações ostensivas, no sentido de evitar que o crime aconteça, como também repressivas, no sentido de buscar especialmente aqueles que recebem esse tipo de material. A gente busca desarticular fortemente a receptação porque, a partir do momento em que ninguém comprar mais esse tipo de material, as pessoas que furtam não vão ter para quem vender. Consequentemente, o furto vai parar também com a desmobilização desse mercado paralelo que é voltado para os receptadores. 

Você acredita que prefeitura e empresas de energia e telecomunicações podem fazer algo a respeito em conjunto com a polícia? 

Esses outros agentes atuam mais na questão fiscalizatória para identificar a origem dos fios, a qual concessionária eles pertenciam originalmente. Assim, a partir do momento da apreensão, podemos identificar onde os fios foram furtados e se eles têm alguma numeração que possa nos levar a quem efetivamente era o proprietário desse material e de onde ele foi subtraído. Mas as empresas também têm que fazer uma mobilização de política interna para proteger melhor o seu material. Seja dificultando a retirada desse material dos postes, dos locais onde eles ficam, seja substituindo esse material de cobre – que é um metal valioso – por outro.

Ao presenciar um furto, o cidadão pode denunciar: 
Existem vários canais de emergência, desde o 190 (da Polícia Militar), 197 (da Polícia Civil), 181 (Disque Denúncia), que podem ser acionados de imediato para comunicar os furtos e promover um imediato deslocamento das forças de segurança.
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