Reportagem

Governo do RS prepara uso de reconhecimento facial contra foragidos da Justiça

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Governo do RS prepara uso de reconhecimento facial contra foragidos da Justiça Foto: Mateus Raugust/PMPA

Já adotada na busca por desaparecidos em espaços públicos no Estado, tecnologia atrai críticas por vieses raciais e violações à privacidade. Bancada de vereadores negros quer banir utilização em Porto Alegre

O governo estadual planeja ampliar o uso de câmeras de reconhecimento facial em espaços públicos para buscar foragidos da Justiça. Desde novembro de 2021, o método é usado no Rio Grande do Sul apenas na busca por desaparecidos. Agora a ideia é implementar a técnica na identificação de suspeitos, medida que já está em uso em ao menos outros 10 estados brasileiros.

Operado pelo Departamento de Comando e Controle Integrado (DDCI) da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP/RS), hoje o Estado dispõe de 24 câmeras capacitadas na atividade – 20 localizadas em pontos fixos de espaços públicos de Porto Alegre e quatro equipadas em unidades móveis. Até o momento, o sistema tem localizado sobretudo idosos desaparecidos ou perdidos pela região do Centro Histórico.

“É uma crescente. Implementamos primeiro na busca de desaparecidos, depois a ideia é ampliar para foragidos e então para pessoas com mandado de prisão em aberto”, explica o major Moacir Simões, diretor de TI e Comunicação do DDCI. Hoje, o departamento negocia com outros órgãos o acesso às bases de dados que poderão ampliar o uso da técnica na segurança estadual. 

Como o poder público já utiliza um software de reconhecimento facial, faltaria o acesso às bases de pessoas procuradas e a criação de procedimentos para começar a identificá-las nas ruas. “Primeiro buscamos o acesso aos dados, depois criamos os protocolos de uso e, por fim, treinamos as pessoas. São várias fases que devem ser bem pensadas e desenvolvidas”, diz o major, que indica ter a estimativa inicial de acessar esses bancos ainda neste ano para começar a implantar a medida a partir de 2023. O Estado também projeta expandir o serviço para o interior, o que dependerá de licitações que possibilitem a criação de centrais regionais de processamento, posto que esse tipo de monitoramento requer servidores poderosos. 

Hoje, a Prefeitura de Porto Alegre também prepara uma licitação para ampliar o uso de reconhecimento facial na segurança pública da Capital, mas ainda não há previsão de lançamento do edital, conforme a Secretaria Municipal de Segurança. O plano é usar a tecnologia em integração com as forças estaduais, como já é feito no caso de desaparecidos por meio do Centro Integrado de Comando de Porto Alegre (Ceic).

Algoritmos com viés racial

O método funciona rastreando os rostos dos pedestres que transitam em espaços públicos. O objetivo é encontrar faces semelhantes às que figuram em bancos de dados – atualmente, o sistema gaúcho compara os rostos detectados nas ruas com os de pessoas desaparecidas que constam em dados mantidos pela Polícia Civil e pelo Instituto Geral de Perícias. Esse “match” entre rostos é feito por softwares de inteligência artificial, que “aprendem” a identificar semelhanças entre faces humanas. O modo como isso é feito, no entanto, criaria vieses raciais nessas aplicações, segundo especialistas.

O cientista político Pablo Nunes, coordenador-adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, explica que esses algoritmos costumam ser treinados tendo a face do homem branco europeu como padrão e que a detecção de rostos negros estaria mais sujeita a erros. Estudos apontam que a tecnologia acusa mais “falsos positivos” contra pessoas negras – em uma análise do aplicativo da Microsoft, por exemplo, 93,6% dos erros na identificação do gênero das pessoas nas imagens eram de rostos negros.

“Se já sabemos que as polícias atuam de maneira racista e têm ideias de perfilação racial, dessa construção de quem é o suspeito de sempre, temos que esse processo é acelerado no reconhecimento facial porque o algoritmo faz essas classificações de pessoas potencialmente suspeitas em uma velocidade gigantesca”, diz Nunes. De acordo com o cientista político, grandes empresas já engavetaram seus projetos que aplicavam algoritmos do tipo à segurança após identificarem esses vieses, que põem pessoas negras em risco maior de serem “confundidas” agora também por inteligências artificiais.

“Não podemos achar que, diante desses erros com pessoas negras, dá para usar a tecnologia mesmo assim e considerar os direitos de pessoas negras como se fossem de segunda categoria, que podem de vez em quando ser violados”, critica o cientista político. Um estudo da Rede de Observatórios de Segurança de 2019 apontou que, entre os presos com a tecnologia no Brasil nos cinco estados que a tinham implementado à época, 90,5% eram negros. 


O projeto norte-americano Gendershades identificou que o índice de erro no reconhecimento facial de mulheres negras é 34% maior do que no caso de homens brancos em app da IBM. Reprodução: Gendershades

De acordo com o major Moacir Simões, um modo de evitar esse tipo de viés racial é buscar softwares que tenham treinado o reconhecimento de faces em bases heterogêneas, que não sejam restritas a poucas etnias. Simões conta que a tecnologia evoluiu e que há certificações internacionais que atestam a qualidade dessas aplicações, apesar de não existir um órgão brasileiro com padrões voltados à realidade nacional. “O grande problema é fazer como foi feito nos Estados Unidos: você pegar a câmera, dizer que fulano ali é tal pessoa e prender, sendo que o sistema não te dá certeza, mas uma porcentagem de probabilidade”, diz. O major afirma que para fins de indiciamento são necessárias uma série de outras evidências.

“Como buscamos pessoas específicas, se conseguirmos localizá-las, serão abordadas e então verificadas cicatrizes, tatuagens e outras marcas de identificação, como as papiloscópicas. Há uma série de amarras para evitar as prisões de inocentes”, explica Simões. Hoje, o uso da tecnologia é regrado pela portaria 065/2021 da Secretaria Estadual de Segurança Pública.

Perguntada sobre os riscos de viés racial em uma eventual implantação da tecnologia, a Secretaria Municipal de Segurança de Porto Alegre negou que esse tipo de viés exista: “Ninguém é preso baseado apenas no uso de um software. O recurso é mais uma ferramenta, dentre tantas outras existentes focada na prevenção de crimes”, respondeu em nota. 

Projetos querem barrar avanço do reconhecimento facial

O uso da tecnologia na segurança brasileira tem crescido desde 2019, após um grupo de deputados da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL) ter viajado à China para importar sistemas de reconhecimento facial. No RS, a promoção da técnica foi possibilitada no mesmo ano a partir de um projeto do deputado estadual Tenente-Coronel Zucco (Republicanos), que se tornou lei em 2020 e autorizou o uso de reconhecimento facial na busca de desaparecidos, que agora será ampliado. O estado pioneiro no uso da técnica, no entanto, foi a Bahia, governada pelo petista Rui Costa, que a aplica desde 2019.

Uma articulação nacional promovida na última terça-feira, 21 de junho, com mais de 50 parlamentares de 13 estados apresentou leis que pedem o banimento do uso de reconhecimento facial em espaços públicos. Na Câmara Municipal da Capital, a proposição do projeto partiu do vereador Matheus Gomes (PSOL) em co-autoria com a bancada negra. “O algoritmo reproduz o humano. Então a suspeição sobre as pessoas negras, que é regra na sociedade brasileira, se reproduz nessa tecnologia. Fora as possibilidades de erro no reconhecimento vinculadas à má iluminação, envelhecimento ou até transição de gênero”, justifica Gomes.

O vereador também aponta preocupações com a privacidade dos cidadãos, já que governos contratam esses sistemas com empresas privadas sem clareza se há garantia de que dados pessoais serão vendidos, e com a eficácia desse tipo de investimento para a segurança. Gomes cita dados da eficácia da tecnologia no carnaval baiano de 2019: na ocasião, dos 903 alertas gerados pela aplicação, apenas 3,6% resultaram em prisões. Na época, o governo baiano já havia investido cerca de R$ 18 milhões na implementação da medida no estado. “Então é algo dispendioso que gera mais ônus para o orçamento público porque é uma tecnologia cara e que consolida uma opção que não combate a origem da violência, que é a desigualdade social”, afirma.

Questionado sobre a proposta de banimento do reconhecimento facial, Simões disse achar natural que novas tecnologias encontrem resistências, assim como teria sido com o videomonitoramento urbano há 20 anos, mas que o debate é importante para melhorá-las. “Temos que ponderar as vantagens e desvantagens para estabelecer balizas necessárias e evitar usos não democráticos que violem direitos. Esses sistemas nos ajudam a retirar das ruas pessoas desaparecidas ou, no futuro, envolvidas em crimes. Imagine um condenado por estupro rondando a cidade, então precisamos desse artifício tecnológico”, considera. 

No Rio Grande do Sul, a principal empresa do setor de videomonitoramento, cercamento eletrônico e reconhecimento facial é a DGT, sediada em Novo Hamburgo. A companhia foi a responsável por fornecer essas tecnologias ao governo estadual, inclusive para a implantação do reconhecimento facial na busca de desaparecidos. No início deste ano, a empresa doou dois “totens de videomonitoramento” avaliados em R$ 50 mil e com a técnica embutida para a Prefeitura de Porto Alegre. 

Contatada pelo Matinal, a DGT não respondeu às perguntas sobre as tecnologias e softwares fornecidos pela empresa.

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