Psicóloga do Conceição é denunciada como autora de áudio transfóbico pedindo voto em Bolsonaro
Conselho pode cassar registro caso constate penalidade grave por parte da profissional, que atende pelo SUS
Atualização: esta reportagem foi atualizada às 15h13 de 24/10 para inserção de nota de esclarecimento por parte da defesa da psicóloga Viviane Sapiro
A psicanalista Viviane Jacques Sapiro, que atende no Hospital da Criança Conceição, está sendo denunciada como autora de um áudio homofóbico e transfóbico que prega voto em Jair Bolsonaro (PL). A denúncia foi feita na última sexta-feira pelo Nuances (Grupo pela Livre Expressão Sexual) junto ao Ministério Público Federal (MPF), que confirmou que o material está sob análise da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC).
O áudio atribuído a Sapiro pretende diagnosticar a comunidade LGBTQIA+ com uma “falha cognitiva”, além de equiparar a política nazista de purismo racial a uma suposta política de “gênero puro”, inadequadamente referida à filósofa estadunidense Judith Butler, que a psicóloga apresenta como “de origem judaica e homossexual”. Embora não se identifique pelo nome, a locutora reivindica a posição de psicanalista para referendar boatos acerca de práticas médicas envolvendo mutilação infantil e prescrição de hormônios para crianças.
Difundido por grupos de WhatsApp, o áudio ataca o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), aprovado em 2009 durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): “A gente tem que convencer as famílias a não só votar no Bolsonaro, como a não votar no Lula, porque é o fim da civilização ocidental”, apela a locutora, que fala em nome de uma sexualidade exclusivamente reprodutiva: “Se a gente pensar que homossexuais não se reproduzem, isso significa que pode ser também, sem exagero, o fim da humanidade”.
O trecho do Programa Nacional de Direitos Humanos atacado pela suposta psicóloga é aquele que aponta para a necessidade de “reconhecer e incluir nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade”.
Denúncia cita crimes de racismo e coação
A denúncia do grupo Nuances ressalta que o áudio viola o Código de Ética Profissional do Psicólogo, desrespeita garantias constitucionais e fomenta o pânico social contra a população LGBTQIA+. “A abordagem da profissional, além de preconceituosa e discriminatória, busca promover a desinformação, ignorando a compreensão do próprio campo da saúde sobre a transexualidade. Os efeitos de tal abordagem se tornam ainda mais graves considerando que a profissional atua como psicóloga concursada no Grupo Hospitalar Conceição, vinculado ao Ministério da Saúde, atuando, portanto, enquanto profissional ligada ao SUS”, alerta a denúncia, pedindo ao MPF que notifique o Conselho Regional de Psicologia (CRP-RS) e considere o cometimento, por Sapiro, dos crimes de racismo e de coação.
Até que considere legislação própria sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, em junho de 2019, que os crimes de homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia sejam enquadrados seja pela Lei de Racismo (7.716/89), seja pelo artigo 140 do Código Penal, que trata dos crimes de injúria racial. Áudios e mensagens recebidas são aceitos como prova, e as penas por crime de racismo variam de 1 a 5 anos de reclusão, mais multa.
De acordo com o Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras, divulgado recentemente pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. O levantamento indica que, entre 2017 e 2021, os estados que mais assassinaram pessoas trans foram São Paulo (105), Ceará (73) e Bahia (72). No período, o Rio Grande do Sul contabilizou 26 assassinatos.
CRP-RS avalia abertura de processo ético, e Hospital Conceição se omite
O texto de apresentação de Viviane Jacques Sapiro em seu site pessoal foi excluído após a denúncia, mas uma recuperação técnica do conteúdo da página deixa ver que a psicóloga ali reivindica ampla atuação no Hospital da Criança Conceição, “onde atende, ministra seminários teóricos, supervisões à Residência Integrada e Estágios de Psicologia Clínica com alunos da UFRGS e da UFCSPA”.
Procurada, Sapiro disse não estar autorizada por seu advogado a comentar o caso. A reportagem buscou, sem sucesso, contato com a defesa da psicóloga – na segunda-feira posterior à publicação esta matéria, o procurador de Sapiro, Pedro Lagomarcino, enviou uma nota de esclarecimento sobre o caso, colada na íntegra abaixo deste texto.
A assessoria de imprensa do Grupo Hospitalar Conceição se limitou a dizer que “é uma situação para ser resolvida com as partes envolvidas e órgãos competentes, conforme a legislação vigente”.
Caso pode levar à cassação de registro
A presidenta do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS), Fabiane Konowaluk Santos Machado, confirmou que o áudio fere diretamente os princípios do Código de Ética da profissão: “Estamos apurando e tentando verificar se a autoria desse áudio é mesmo de uma profissional da psicologia. Caso isso seja detectado, será aberta denúncia e um processo ético, que corre em sigilo”, explicou Machado, confirmando a possibilidade de cassação do exercício profissional, caso constatada uma penalidade grave.
O CRP-RS ainda lançou nota se posicionando em “defesa intransigente dos direitos humanos e de reconhecimento do direito à autodeterminação como parte da autonomia das pessoas e de sua identidade de gênero”, lembrando ainda que a atuação do psicólogo deve “considerar as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais”.
Também por meio de nota, a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) negou vínculos associativos com Sapiro, que foi membro da instituição entre outubro de 2014 e novembro de 2018. “Reiteramos a nossa responsabilidade, incondicional, com a defesa da democracia e dos direitos humanos. Isso requer, também, o respeito às diversidades, o enfrentamento ao racismo e à discriminação de gênero e LGBTQIA+fobia”, completou a APPOA.
• Nota de esclarecimento da defesa de Viviane Sapiro
A pedido da Dra. Viviane Jacques Sapiro, como seu procurador constituído, venho esclarecer que, até o presente momento, não existe acusação em denúncia formalizada pelo Ministério Público em relação a suposta prática de atos homofóbicos, transfóbicos, racistas e coação eleitoral.
Impõe-se destacar que, recentemente, referida profissional vem sendo alvo de mensagens de discurso de ódio em redes sociais (a exemplo do Facebook, Instagram, grupos de Whatsapp e Telegram, dentre outras) após um suposto áudio de conteúdo privado atribuído a referida profissional ter vazado e estar sendo compartilhado de forma descontextualizada, sem qualquer consentimento e autorização.
Na hipótese de serem identificadas violações em relação a vida privada da referida profissional, bem como a sua honra, imagem, reputação ou perseguições de toda a ordem, inclusive as realizadas por meio de redes sociais, oportunamente, os autores das ofensas serão devidamente identificados e responsabilizados através das vias legais cabíveis.
Dr. Pedro Lagomarcino
OAB/RS 63.784