Parêntese

A meritocracia de penteado novo

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A meritocracia de penteado novo

Esses dias eu estava em um slam, quando uma das competidoras – uma poeta negra, recitando diante de um público majoritariamente negro – de repente tirou do bolso da alma uma poesia linda, forte. Os últimos versos falavam da admiração por um homem negro que foi preso só por erguer o punho cerrado, e a poesia terminava assim:

Quem nasceu pra Chico Buarque
Jamais será Tony Tornado

Bom, eu estava lá. Eu vi e ouvi o que o poema provocou em mim e nas pessoas. Aplausos, gritos, lágrimas. O ar, as paredes, o chão: tudo tremeu. De algum modo misterioso, toda uma dor multissecular e todo um orgulho ainda mais antigo estavam embutidos naquele pequeno arranjo de palavras.

Emocionado, imediatamente postei esses versos finais no Facebook. Foi uma péssima ideia. O post atiçou as lombrigas da branquitude e logo a coisa toda virou treta. Para não posar só de vítima, admito que depois fui lá e joguei ainda mais lenha na fogueira, chamando todo o mundo de “boqueteiro de Chico Buarque”, atitude da qual não me orgulho (por favor, leiam o “não me orgulho” imaginando este que vos fala mordendo a língua para abafar uma risada).

Mas se nessa história toda eu não fui só uma simples vítima de nobre coração que vai todos os dias ao bosque recolher lenha, está claro que fui no mínimo ingênuo. Esta não é a primeira vez que sofro as consequências de usar o nome do Chico Buarque em vão, prova de que eu não soube me beneficiar da experiência.

Analisemos a minha ingenuidade. Para início de conversa, no momento do post eu estava emocionado, como já disse, e no calor dessa emoção não pensei em nada; apenas quis compartilhar aqueles versos com as pessoas, sem imaginar que aquilo produziria tumulto. Mas a minha ingenuidade não termina aí. Mesmo depois, analisando os versos com frieza e atenção, não consegui considerá-los ofensivos ao Chico Buarque. Aliás, no modo como eu particularmente entendi a poesia, os versos nem mesmo se referem ao Chico Buarque ou ao Tony Tornado; uma interpretação de pedra como essa seria equivalente a deduzir que o Cartola devia literalmente ter o hábito de conversar com as rosas, na esperança concreta de ser ouvido por elas. Enfim, demorei a compreender que, no final das contas, o fenômeno não refletia realmente uma revolta contra maledicências dirigidas ao Chico Buarque, e sim outra coisa, mais sutil e mais complexa, que eu me atrevo a teorizar já, já.

Antes, porém, faço ainda outra mea-culpa: ao contrário do que acontece nestas linhas, no post não apresentei qualquer contexto. Coloquei tudo entre aspas, é verdade, e além disso mencionei a autora, mas não esclareci que eram os versos de uma poesia e que essa poesia tinha emocionado a mim e a outras pessoas. Não me desdobrei para explicar que uma obra literária tem várias camadas de linguagem, sendo o conjunto do significado imediato das palavras apenas uma delas, de tal maneira que versos como aqueles conseguem comunicar muito mais do que apenas as mensagens rudimentares restritas ao nível de abstração do beabá. Tudo isso me pareceu evidente. Achei que as aspas e a menção à autora bastavam. Talvez eu tenha superestimado a inteligência das pessoas que foram lá se queixar.

Agora, falando sério: eu não gosto da ideia de usar espaços como este para lavar roupa suja. E nem é por constrangimento nem nada do tipo, mas porque não acho justo que uma parte envolvida em determinado debate tenha a oportunidade de desenvolver o seu raciocínio em um espaço a que as outras partes envolvidas no mesmo debate não têm acesso. Sempre achei esse tipo de coisa uma covardia. Mas há um par de motivos para eu estar aqui hoje, falando sobre essas coisas. Em primeiro lugar, cheguei à conclusão de que também é uma covardia o que fazem comigo quando um post meu vira treta: várias pessoas comentam ao mesmo tempo, com argumentos repetidos, e a cada resposta minha, mais e mais pessoas (a quem não dei a menor intimidade) aparecem e multiplicam mais e mais os mesmos comentários repetidos, as mesmas cobranças por explicações, as mesmas críticas. Eu nem tenho mais comentado nos meus próprios posts por causa disso. Em segundo lugar, este texto, assim como a poesia da slamer, não é realmente sobre Chico Buarque; venho aqui tratar de algo que escapa àquele bangue-bangue maluco, e por isso não considero estas linhas uma deslealdade com aqueles que foram lá no meu post sacar os seus revólveres. No fundo, estou debatendo sozinho.

Poxa, eu gosto do Chico. Nunca cheguei a comer um pastel com ele na Lola, mas ele me parece boa gente. Adoro as músicas dele, e também a dramaturgia, embora eu só conheça duas peças. Mas é incrível: já me meti em duas tretas envolvendo o Chico Buarque… Aliás, espera, espera. Nem foram tretas envolvendo ele. Isso nem seria possível. Pelo amor de Deus, o homem deve ter mais o que fazer e nem sabe que eu existo! Eu me meti, isto sim, em duas tretas envolvendo as palavras “Chico” e “Buarque”, necessariamente nessa ordem. Na primeira, rolaram boatos de que queriam cancelar o homem e eu tive a infelicidade de fazer um post dizendo que isso não seria possível, já que ele tem olhos azuis. E a segunda treta foi essa agora, por causa da poesia da slamer. Mas, retomando a linha de raciocínio, é incrível: em ambas as tretas, a primeiríssima coisa que as pessoas deram a entender foi que eu devo ter um problema com o Chico Buarque, que por algum motivo eu não devo gostar dele.

Essa é uma inversão completa do que realmente acontece. Não sou eu que por algum motivo não gosto do Chico Buarque; são as pessoas que se sentiram incomodadas com os meus posts que por algum motivo santificam o Chico Buarque, ao ponto de não tolerarem sequer um comentário onde elas suspeitem (equivocadamente) haver uma crítica a ele; uma questão psiquiátrica.

Na primeira treta, quando eu claramente tinha a intenção de dizer que olhos azuis dificultam o fenômeno do cancelamento, é interessante perceber que a figura do Chico Buarque acaba servindo de trampolim para os negacionistas do racismo estrutural. Afinal, estamos mesmo de acordo que existe racismo estrutural? Estamos de acordo que “estrutural” significa que esse racismo compõe a própria estrutura do tecido social, de tal maneira que todos os fenômenos sociais tendem a manifestá-lo? E estamos de acordo que o cancelamento é um fenômeno social? Se todas as respostas foram “sim”, então, pronto, caso encerrado: é mais difícil cancelar o Chico Buarque porque ele tem os olhos azuis. Do contrário, se nem todas as respostas foram “sim”, as pesquisas e estatísticas estão aí para isso; me recuso a dialogar com quem se nega a reconhecer fenômenos já tão fartamente demonstrados.

A propósito, vocês já ouviram falar da Lia Vainer Schucman? Como mulher branca, ela tem feito um movimento muito interessante de pesquisar a branquitude, enquanto classe dominante e opressora, em vez de sair por aí explorando, lucrando e se apropriando das temáticas negras e indígenas. Na sua tese de doutorado, ela entrevistou diversos brancos, desde pessoas em extrema vulnerabilidade até grandes fazendeiros. E todos eles, em algum momento, reconheceram algum tipo de vantagem por ser branco. Mesmo uma pessoa branca em situação de rua, por exemplo, explicou que podia entrar no shopping para usar o banheiro, enquanto a entrada de pessoas negras na mesma situação era barrada. Então reparemos que mesmo a indigência, que é um fenômeno social, não só manifesta o racismo como o manifesta de múltiplas maneiras: já é sabido que a maioria das pessoas empurradas para essa situação são pessoas negras, e além disso agora sabemos também que a própria situação em si é mais grave para as pessoas negras do que para as brancas. Ou seja, existem níveis de desumanização para os quais é impossível empurrar uma pessoa branca, mesmo que essa pessoa branca seja expropriada de todos os recursos materiais imagináveis. E na outra ponta desse vômito estão figuras como a do Chico Buarque, que são alçadas a um patamar de dignidade, de respeito e de nobreza a que negro nenhum no Brasil jamais terá acesso enquanto o racismo estrutural não for devidamente extirpado.

Há algo interessante que acontece a respeito do racismo e do combate ao racismo. É como se nós, enquanto sociedade, andássemos em círculos. Os movimentos negros identificam um problema fundamentalmente étnico no tecido social e atacam esse problema; os brancos, a princípio, resistem, negam a existência do problema, mas depois acabam cedendo, tamanha é a fartura de evidências de que o problema é mesmo real. Mas logo o mesmíssimo problema ressurge, com outro penteado, e isso basta para que os brancos tornem a negá-lo. Usemos as ações afirmativas como exemplo: muitos dos brancos que hoje se dizem antirracistas foram contrários às cotas raciais lá atrás, mas acabaram cedendo depois. Então o tempo passa e alguma coisa qualquer acontece, como quando o Prêmio Jabuti passou a perguntar sobre raça na ficha de inscrição, e lá vêm os mesmíssimos brancos de antes, soltando da garganta os gritos que ali estavam entalados: “Mas somos todos humanos!” ou “o talento não tem cor!”.

É ridículo. É a incapacidade de compreender um conceito geral simples: brancos e negros não podem receber o mesmo tratamento das políticas públicas e afins, pelo simples fato de que brancos e negros não estão nas mesmas condições sociais, e brancos e negros não estão nas mesmas condições sociais porque as políticas públicas e afins jamais foram isentas; por séculos a fio, as políticas públicas e afins serviram justamente como ferramenta de dominação com a qual os brancos escravizaram, desumanizaram, dizimaram, enriqueceram.

Nos meus posts que viraram treta também identifico esse fenômeno de repetição. Ora, o que leva as pessoas a largarem tudo o que estiverem fazendo para irem às redes sociais defender a honra do Chico contra ataques que nem sequer existiram de fato? Eis aí a meritocracia de penteado novo, e os brancos sempre prontos a defendê-la. É necessário, para essas pessoas, presumir que o status do Chico Buarque na sociedade brasileira se deve única e exclusivamente a talento puro, sem a mínima influência das estruturas sociais racistas, como se ele estivesse isolado de tudo isso, porque simbolicamente isso justificaria, em alguma medida, a posição social que essas pessoas ocupam, já que são brancas como ele. Se o Chico Buarque é o que é, tem o que tem, é tratado como é tratado única e exclusivamente porque fez por merecer, então resta uma esperança para essas pessoas, brancas como ele, de que também elas sejam o que são, tenham o que têm, sejam tratadas como são tratadas única e exclusivamente por terem feito por merecer. E é claro que nesse continente mental, como diria o Flávio Dino, é inadmissível que alguém cometa a blasfêmia de dizer que preferiria ser o Tony Tornado do que ser o Chico Buarque.

Para encerrar este texto, faço minhas as palavras de outro poeta que estava lá no slam. Ele recitou uma poesia impressionante, que falava da história do Brasil como se fosse um período pré-vestibular e terminava assim:

Vocês tiveram 500 anos pra estudar
E mesmo assim ainda não aprenderam
A resposta pra qualquer pergunta é
Tudo preto, tudo preto, tudo preto

P.S.: vejamos se desta vez aprendi: caros leitores brancos, mantenham a calma; esses versos não significam que queremos exterminá-los.

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