Cartas

Olá Caro Leitor, Olá Caro teu outro leitor,

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Olá Caro Leitor, Olá Caro teu outro leitor,

Laranjal, dezembro de 2020

como vais? Eu vou indo. Por aqui, pela volta, pelas beiradas, forcejando para ir, para ir-me, quem sabe?, … E tu? Como andas? É eu vou indo, mas a coisa aqui tá preta. Já há alguns dias, uma mancha negra como a da peste vem assolando o Rio Grande, do Uruguai para o norte. O mapa da mancha, líquido como pintado a tinta guache preta, é avassalador. Parece uma luva fantasmagoricamente preta, magma líquido, engolindo os campos neutrais, o pampa, subindo subindo, indo, engolindo lagunas e rios, o estuário. Nosso Brumadinho. Sempre a mão podre do homem.

Mas é Natal, sabes, e há poucos dias (neste ano de tanta comunicação) recebi via whats uma charge que traduz muito meu estado. Meu estado emocional, quero dizer. Meu estado passando por este ano. Te conto: no primeiro quadrinho, são apenas quatro, um dragão, ou imensa cobra, quiçá uma m´boitatá, olha com desprezo para um cachorrinho vira-latas. Do alto de sua sabedoria inerte, fundassentada, declara a estupidez do cachorrinho (“dogs are stupid”, diz o ser inerte como se ele, o cachorrinho, ali não estivesse). No segundo quadro, o ser inerte explica a alma poliana dos cachorros de rabinhos abanantes: felizes por de nada saberem. Eis que então, no terceiro quadro, o cachorrinho vira-latas, já não mais atônito, senta, rabinho apoiado no chão, as barbas de molho, e responde. Como se não houvesse o outro, ele diz mais para si mesmo que para a comedora de olhos: “i know plenty”. A desproporção é tamanha, é como se não conversassem.  A fórmula, irrepetível, i know plenty, se aproxima de “sei o bastante, sei o que me basta”. A ela se segue uma frase de cunho budista, oferecida ao mastodonte. O cachorrinho, como Pollyanna, era budista afinal: “Apenas ponho foco nas coisas que consigo controlar; e nas coisas que amo/nas coisas de que gosto”. 

Ô, meu caro leitor, pois que venho por aqui falar e não falar contigo, meio brincando de ser um papai noel extemporâneo, bastante esdrúxulo – e certamente sem noção, por aparecer assim, sorrateiro e mal disfarçado, neste ano de tanta barbárie. Venho aqui jogar um jogo de esconde-esconde contigo. Um tanto porque, em outros anos, eu nem estaria escrevendo esta pequena carta, assim, já por isso esta que te escreve sou e não sou eu. Embora afeita às cartas, à escrita delas, certamente não a estaria escrevendo nesta época de preparo para festas de natal e de final do ano. Já há muito o tempo tem um caráter circular para mim, e as festas de fim de ano se repetem ad infinitum sendo, enfim, incontroláveis (quanto a mim, afora as horas de início das aulas e as exigidas pelo livro-ponto, vou deixando a vida me levar).

Mas a principal razão pela qual me vejo aqui a repetir e a não repetir este gesto ancestral na escrita literária (te chamo para a conversa e nada digo; falseio falar contigo, embora esteja aqui de fato solita no meu pago; a carta – a escrita – sempre lida com dois tempos, o que faz ser impossível estar contigo), a grande razão do jogo é não ser exatamente para ti que eu gostaria de estar escrevendo.  Me explico.

Aqui pelo sul, sei, sabemos todos, tu leitor, e eu, e os outros todos que estão aqui do nosso lado, todos passarinharemos. Portanto teríamos que ser capazes, e eu não sou, de um contato com os que caminhões, trucks e truques e trustes e trastes. Quanto a mim, caninamente i know plenty, e assim i´d rather not falar com essas gentes – sei que repito aqui outra fórmula, essa para muitos inconcebível. Preferia que não fosse, preferia que não, preferia nada. Como sair desse impasse?

De tudo, me fica uma certeza: não podemos abrir brechas em nós, brechas que permitam em nós que seus modos, brutos, emerjam, de nós em nós. Do mesmo modo que cuidamos de nossos corpos para que o vírus não se instale e, se instalando, não nos avassale, cuidemos de cada palavra nossa, de cada atitude nossa, para que a virulência estrutural não seja capaz de vencer nosso bom e macunaímico selvagem.

Por tudo isso, leitor, não é bem contigo que desejo falar, não é bem para ti esta carta. Ou sim, é para ti naquele recanto em que não te reconheces bem, ou onde reconheces teres também culpa por toda a situação terrível, claustrofóbica para além da pandemia, em que nos encontramos. Esta carta é escrita para o outro que também és, para quem deixas emergir, nas piores horas, nas mais exigentes, na hora mais escura, naquela mínima prática cotidiana, naquele arranhão que damos no outro, feito de né, já te disse, kkk – retruques que fazemos sem querer, quase por cacoete tecnológico. Nos instantes de perigo, em que deixamos deslizar, insensivelmente, pelas frestas, o ser selvagem que cada um de nós ainda guarda. 

Escrevo uma carta neste noel para o pequeno monstro que habita em cada um de nós. Monstrossário ao qual devemos conter.


Renata Requião é graduada em Arquitetura e Letras, com mestrado e doutorado no Campo de Literatura / Poesia & Artes Visuais Contemporâneas no Brasil. Professora, orientadora e pesquisadora, atuando no PPG – Artes Visuais, UFPel, e na graduação dos cursos de Artes Visuais, Arquitetura e Urbanismo e Antropologia, propondo a produção de “mapas poéticos” e exercícios de leitura e escritura. Foi Secretária de Cultura (PT), em Pelotas. Lê, escreve, faz esboços; gasta longas horas preparando seu jardim e registra o que se passa na linha do horizonte da Lagoa, no Laranjal (http://artcontexto.com.br/).

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