Carta a Carolina

Carolina,
[posso começar assim? com tanta intimidade?],Vi tuas letras nos cadernos expostos na Bienal e fiquei pensando tanta coisa, pensei antes, pensei durante, pensei depois. Na hora que eu vi que eram os teus cadernos, de verdade, abertos ali em uma página escolhida pela curadoria, protegidos pelo vidro da mesa expositora, respirei um pouco e chamei minha companheira pra ver comigo. Porque eu não conseguia ver sozinha, não queria ver sozinha, não queria guardar pra mim aquele momento como uma realização íntima e cifrada.
Minha companheira ficou ao meu lado, com a visão derramada sobre tua escrita, as letras desenhadas nas folhas, os cadernos abertos como um peito desnudo expandido pela tentativa de um abraço. Eu me emocionei, fiquei pensando nos cadernos que guardo de minha mãe, seus diários, seus documentos, a origem mineira como a sua, a migração para São Paulo, a negritude revelada na pele e nos passos dados.
Pensei em minha avó, Donatília, lá do vale do Jequitinhonha, analfabeta. Morreu de asma no hospital público. Toda vez que eu tenho crise de asma penso nela, penso que herdei isso dela, os pulmões a todo custo tentando escapar do sufocamento. Pensei na sociedade brasileira inteira que também tocou na herança da minha avó que já nem é mais somente minha. Uma interminável e não inventariada falta de ar, falta de respiradores em uma pandemia, a morte silenciosa em um canto da enfermaria, uma maca improvisada rangendo seus ais que servem de túmulo a corpos negros e indígenas de todos os formatos.
Por outro lado, para me avivar, penso em como a escrita chegou para a nossa família, não apenas como alfabetização, mas como instrumento de liberdade. A escrita como ossos, cálcio, potássio, Carolina, uma ossatura completa e reluzente que antecede o papel e a caneta. Tuas palavras no caderno, as letras desenhadas, ora corridas, ora ralentadas, para mim são verdadeiros artefatos arqueológicos da cultura brasileira. Teus cadernos, a pulsão de vida que perfurou a tua miséria, a tua fome, a tua dor, a tua solidão. Olhá-los de perto, ainda que pelo vidro da mesa, nos concede a etérea chance de te falar: nós estamos aqui contigo, Carolina, você não está sozinha.
[Continua...]