Crônica

A Arte, a democracia e a trilha pre-ferida

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A Arte, a democracia e a trilha pre-ferida

Estava com minha caçula numa trilha em Florianópolis, a do Gravatá. Trilha fácil mas não desinteressante, curta mas não sem subidas e descidas, uma trilha que permite ver toda a praia Mole e a ilha do Xavier e de onde salta-se de parapente. Eis que a menina de sete anos me para e diz: 

“Mãe, esta não é minha trilha preferida”. 

“Não?”

“Não, porque eu só conheço esta, então ela não pode ser a preferida.”

Depois da rápida crise por me dar conta que apesar das dezenas de trilhas em Florianópolis eu levo minha filha sempre na mesma, porque ao contrário dela a do Gravatá é minha preferida, vejo na frase da criança a melhor razão para protegermos com unhas e dentes a arte e a democracia. Sem elas corre-se o risco de viver em uma única trilha independente da vontade, da necessidade ou do desejo. Mas, mais do que isso, trata-se da impossibilidade de perceber outros caminhos e vontades e desejos. Se minha filha sofre as escolhas da sua mãe, imagina se não lhe fosse reservada a possibilidade de expressão e de fala. A possibilidade de desejar algo diferente de mim. O que seriam dos nossos incômodos sem a arte e sem espaços políticos capazes de acolher a diferença? E sim, estou relacionando arte e política considerando o sentido radical de ambas: o de realização da nossa humanidade, mas também porque amanhã teremos o segundo turno das eleições presidenciais e os meus nervos estão a flor da pele. 

Dificilmente podemos questionar uma paixão, isso vale para o amor, isso vale para a politica. Mas nem todo amor nos faz bem. E devemos questionar os feitos das paixões e observar seus rasgos. A arte nos mostra isso. A obra “TrincAr”, de Denise Milan, na 13a. Bienal do Mercosul, traz um rasgo de 18 metros a revelar as vísceras inflamadas da terra. As paixões nos revelam. Se não é legítimo questionar o que nos provoca borboletas na barriga, devemos questionar sim o que deixa alguns vazios.

Há algo neste nosso tempo que está nos atravessando, e a arte parece tentar nos alertar. Da mesma forma que a menina de sete anos não pode ter sua trilha preferida se nenhuma outra lhe for apresentada, visitar a 13a. Bienal do Mercosul depois da 59a. Bienal de Arte Veneza é percorrer velhas e novas trilhas e perceber que há algo comum acontecendo no campo das artes e da politica. 

O corpo, a tecnologia, o tecer e o meio ambiente, o trauma e a guerra, a fuga e a criação, nos convocam, e a arte mostra, ao menos é o que percebi tanto na Bienal de Veneza quanto na Bienal do Mercosul. Um privilégio e uma sorte visitar as duas. Posso dizer não ter uma trilha preferida neste caso porque ambas, cada uma a seu modo, perturba, oferece e tira certezas. Se Veneza é a cidade das palafitas, Porto Alegre é onde nasci e cujas veias me apresentaram o mundo. Sobre ela não tenho isenção para falar pelo tanto que me constituiu em corpo. 

Esse corpo visceral e que pulsa está lá na obra delicada e potente de Lozano Hemmer, “Pulse Topology”. Composta por três mil lâmpadas conectadas a um sensor que capta o pulso e registra os batimentos cardíacos dos visitantes, a instalação permite ver e ouvir o que sentimos, ou deveríamos sentir. O pulsar é uma topografia. Um coração capaz de acelerar e morrer e parar na boca, como expôs o artista brasileiro Jonathas de Andrade na Bienal de Veneza. 

Um corpo é individual, mas também é social. Tino Seghal com sua obra “This Element” nos lembra que fazemos parte de algo maior. Ele utiliza singles de música pop e tons vibracionais que se relacionam, há fragmentos de musicas da banda alemã Kraftwerk e da rapper estadunidense Missy Elliot; a proposta é montar grupos para cantar e criar um estado meditativo a partir do alinhamento dos chacras. Para Seghal, cantar não apenas conecta o corpo, a mente e a alma, mas permite conexões com quem nos cerca. Na linha dos sons Ivan Caceres incorpora elementos da cultura andina, criando um objeto híbrido inspirado no chakana e no pututu, e convida os visitantes a interagir numa zona limiar entre o real e o onírico. 

A arte é afeto. Panmela Castro, na sua poética, desenvolve obras a partir de diferentes memórias transitando pelas ruas como uma andarilha no que ela chama de “busca incessante de afeto”. Ela apresenta uma série de cinco instalações de spray sobre espelho com frases escritas: quem lê a frase, lê para si.

Arte, amor e politica alimentam-se das paixões, pathós. Dos arrebatamentos diante de algo novo, da percepção de incômodos, são a consciência da diferença, do desconhecido, de uma forma de sentir e perceber o mundo, o ineditismo de tirar o fôlego e acelerar o coração.  

A paixão é a porta de entrada para novas trilhas, trajetos e afetos. Marina Abramovic com “Seven Deaths” cria uma experiência cinematográfica unindo sete mortes prematuras a partir da música de Maria Callas. A morte de Desdêmona, o salto de Tosca, o suicídio de Madame Butterfly são algumas das mortes representadas por Abramovic em vídeos repletos de detalhes e simbolismos de gênero, violência e solidão. 

O pulso e o tempo. Se Lozano nos faz ver a luz do nosso pulsar, Felippe Moraes nos leva a perceber o tempo no movimento de um pêndulo de areia. A vida é um sopro a escorrer por nossos dedos como areia quente. O resultado dessa areia-tempo, que se esvai delicada e constantemente do pêndulo, cria imagens que lembram desde as mandalas dos monges tibetanos até os pontos riscados dos iorubá. No desenho pronto no chão a marca do tempo que passou, como rugas e cicatrizes. Esse tempo de vida difícil de conter, necessário viver.  



Volto à trilha da minha filha e ao tempo de percorrer espaços. O tempo sem espaços, sem marcas, não se permite perceber nem existir. Como experimentar esse tempo-vida sem os pés, sem a experiência. A arte nos provoca a olhar para nossos pés de meia sem par e o quanto isso nos faz ver o novo ou revisitar velhas sensações. Lídia Lisboa, na instalação “Pé de Meia”, fez isso: pés de meia sem par se juntam numa longa composição. Algo se perde, algo se cria. 

Duas grandes exposições de arte interrompidas por uma epidemia trazem nas suas instalações o corpo, o tecer, a tecnologia e o meio ambiente. Ambas são em si atos políticos. Essa política que existe para garantir que cada um torne-se a continuidade do que lhe cabe ser, como disse um poeta. 

Nada mais razoável do que estarmos nesta véspera de pleito com o pulso acelerado. A eleição de amanha não é apenas sobre gestão e ideias econômicas: é uma eleição sobre o direito a desejar e a censura ao desejo.



Me distancio muito das crenças messiânicas sobre candidatos; para mim, ainda insistimos em ter o messias ou o painho salvador no Brasil. Há uma resistência a “matar o pai” e crescermos. Ainda creditamos aos políticos imagens de algo muito mal resolvido em nossa alma. Igualmente não creio que o Brasil esteja divido entra fascistas e não fascistas ou qualquer outra adjetivação simplificadora, porém confortável para quem a professe. De qualquer forma esta é uma eleição sobre a possiblidade de divergirmos das trilhas que nos foram apresentadas ou sermos proibidos de questionar e duvidar. 

Nesse pulsar de cada dia, desse coração que bate e vai parar na boca, nesse tempo que corre entre as mãos e nessa vida que nos tira os pares e fala da nossa solidão, preservar a arte e a política é um ato subversivo no sentido de garantir nossa humanidade. A arte existe porque a vida não basta, disse Ferreira Gullar. Uma única trilha não basta, e fazer escolhas é criar uma ferida, abrir mão de algo, é permitir-se ter uma trilha pre-ferida e saber que ela mudará ao longo da vida, porque a vida e uma única trilha não bastam.


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione

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