Crônica

Sessão de macumba

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Sessão de macumba Foto: Svetlana Afonina/Pexels

Indo direto ao ponto, a questão é que essa coisa de evoluir não é muito pra mim. Terapia com psicóloga, espiritismo, caridade, enfim, meu negócio é mais viver na loucura e no pecado, que é pra ficar mais tempo por aqui, ser uma velha que reclama de tudo, eu gosto assim, e de vez em quando tomar um remédio pra dormir (receitado por psiquiatra? Conseguido clandestinamente? Nunca saberão). ENTRETANTO, até eu, às vezes, gosto de ter um axé; posso não me esforçar muito, mas também sou filha de deus, quer vocês queiram, quer não.

Então esses dias chega uma mensagem no meu celular, “Quer ir numa sessão hoje?” – e vindo de quem veio, já saquei que era sessão de macumba. Não tava muito a fim, ter que sair de casa à noite, atrasar o horário da minha janta, daí que perguntei como, o quê, por quê, e a pessoa respondeu bem assim: “Vem comigo que te explico no caminho kkkkk”. Bem, aí já achei que era de fato um chamamento e topei.

Terreiro a que nunca fui, fiquei bem quieta. E antes de começar a incorporação, a mãe de santo falou sobre a religião, inclusive dizendo que ali não tem promessa de milagre, quer dizer, que cada pessoa estava ali buscando uma ajuda, mas que se fosse, por exemplo, um emprego, não adiantava ir ali pedir isso e ficar em casa moscando. Foi aí que eu pensei: tá aí, foi isso que vim pedir, viu como era um chamamento?

Também explicou que naquele dia seria a gira de esquerda – ainda bem, né? Porque assim: gira de esquerda é quando baixam exus e pombas giras. E o que que tem? Na umbanda, tem os orixás e os guias espirituais. Pra vocês que são preconceituosos e têm medo até da loira do banheiro, explico: é como se os orixás fossem deus e os guias fossem os anjos, tipo, exus e pombas giras estão um cargo abaixo, mas trabalhando firme pra ter promoção na firma. Então são espíritos que, depois de fazer todo tipo de randevú encarnados, agora, desencarnados, buscam a evolução, e pra isso eles ajudam espíritos piores que os deles, tipo eu. Daí que disse “ainda bem”, porque exus e pombas giras são mais gente como a gente, não são perfeitos. Eu pesquisei no Google pra facilitar pra vocês.

Pra entenderem o que se sucedeu no passar da macumba, devo informar que trabalho como autônoma pra editoras e fazendo o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), e estamos há quase dois anos sem trabalho de PNLD, o que significa que tô praticamente, se não absolutamente, falida. Se tem livro pra revisar eu ganho dinheiro, se não tem, não ganho, simples assim (beijo, Serasa!). E nesse sistema, eu sou a prestadora de serviço e então chamo as editoras de: CLIENTES.

Chega minha vez de tomar o passe, baforada na cara, apertão nas costas, urros na minha frente, eis que a entidade incorporada me pergunta o que me levou até ali; respondo: “Eu trabalho por conta própria e tô numa baixa de CLIENTES enorme, como já faz tempo, isso tem me preocupado”. Ela me olhou por um bom tempo, deu uma fumaçada no meu pescoço e lançou: “O problema da moça é que não tá confiante nela. Tem que confiar. Não importa idade, se é bonita ou feia, não tem isso de bonita, feia, se fazê o ofício direito, não vai faltar cliente, tem que se aparecê”.

Oxe.

Bem, olhando pra minha cara, vê-se que sou uma mulher de 45 anos, que pra muita gente estaria fora do mercado, mas muito me consolou saber que hoje em dia não tem mais essa de puta velha, não tem idade, não tem boniteza, enfim, era só eu me dedicar e me aparecer. Beleza, nem tudo tá perdido.

Na sequência, ela me mandou tomar um banho de pitangueira com erva-doce, que isso traria rapidez pra minha vida. Rapidez pra ter os clientes. Na dúvida, considerando que deu ruído de comunicação sobre o ofício que exerço, não tomei o banho, eu não sei exatamente a que rapidez ela se referiu, vai que dali a pouco acontece comigo igual aconteceu com uma amiga? Aconteceu com ela assim: terminado o curso de massoterapia, divulgando o trabalho, um homem ligou e perguntou se ela fazia massagem que “tocava nos genitais”. Nada contra, nem minha amiga, mas não é nosso negócio.

De todo modo, não fiquei confortável de questionar a entidade, vai que numa dessas a Pomba Gira estivesse sim falando de editoras e livros e a visão distorcida era a minha. Mas a pulga lá, fazendo horrores na minha orelha, e eis que então, pedindo perdão aos orixás, pesquisei no Google. Infelizmente não teve nenhuma pista de que pitangueira com erva-doce faria o governo brasileiro definir duma vez esse inferno de novo ensino médio e largar pro mundo o edital do PNLD. Então, né, deixei o banho de ervas pra lá. Que com coisa séria não se brinca.


Ana Marson nasceu em 1978, em Porto Alegre. É mestre em literatura brasileira pela UFRGS, viveu em São Paulo de 2008 a 2016. Trabalha como revisora de textos e designer instrucional. Publicou A cobra da laranjeira – crônicas muito azedas (Consultor Editorial, 2017).

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