Crônica

A felicidade clandestina de meu avô

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A felicidade clandestina de meu avô

Gotículas de água umedecem o asfalto e anunciam a chegada da noite. É domingo e meu avô se ajoelha no meio da sala, com os cotovelos apoiados na mesa de canto e a cabeça deitada nas mãos. Parece reza, mas não há terço. À sua frente está uma pequena tela de 8”, que aguarda pelo seu chamado. Aos 81 anos, meu avô entoa forte o seu timbre cansado e solta: “Alexa, tocar Francisco Egydio”. Enquanto espera a reação tecnológica, levanta a perna direita, feito um goleiro que posa para a foto pós-campeonato.

Observo, de longe, esse seu contato. Meu avô mantém-se embasbacado com o mundo de respostas que uma caixinha pode lhe oferecer. Já eu, agora sim em reza, peço que chegue na velhice carregando o mundo de respostas que ele tem em suas lembranças. Quero também um joelho fortalecido — sua pose não é ligeira, prolonga-se por minutos. Parece desconfiado da estranha Alexa que agora dividirá o apartamento que ele, até então, só dividi com a minha avó: quer observar de frente se a voz robótica consegue compreendê-lo.

Somente quando escuta Francisco Egydio cantar “com esperanças o meu coração…” meu avô sai da posição de súplica, movimento brusco para quem deve sentir dores nas juntas. É susto com misto de magia. Levanta e estagna, parece ler meus pensamentos, porque não tarda um minuto em relembrar histórias do cantor, que Alexa nenhuma seria capaz de encontrar nos primórdios da internet. “Você não pode imaginar, ele era o homem mais elegante do Morumbi. Ia sempre na cadeira cativa e sempre de terno branco”. Diz e depois se cansa da cantoria: “Muito obrigado, Alexa, já pode parar”. Minha mãe gargalha alto: “Não tem que agradecer a Alexa, pai”. Mas ele agradece mesmo assim. Deixa o aparelho ligado, mas sem uso.


Parece sentir que a chuva engatou à medida que a tecnologia invadiu a casa. Tem de ter paciência e usar pouco. Quer diluir as possibilidades. Tem medo da nova moradora desistir de ajudá-lo. A Alexa é sua “Felicidade Clandestina”. Minha avó, que pouco ligou para o brinquedo novo, horas depois avisa que vai ao mercado: “Fica aí, Fernando”, e sai. Acaba encontrando uma vizinha no meio do caminho e se perde no horário. Sozinho e em posição de prece, meu avô corre para a sua amiga, pede desculpas por atrapalhar e diz: “Alexa, minha esposa sumiu”. Depois do silêncio, a resposta: “Sinto, não tenho informações”. Já em outro cômodo, pensa que usou a Alexa para nada. Precisa controlar sua tagarelice.


Mariana Ferrari é jornalista e escritora.

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