Crônica

Acontecimento

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Acontecimento Encontrei meu fio de cabelo branco essa semana de novo. A primeira vez que ele apareceu foi no fim do ano passado. Entrei em pânico, sem saber o que fazer gritei pela Marcela. Olha! O quê? Olha! E a frase não saía completa. Eu só conseguia apontar pro coitado que àquela altura já devia estar altamente constrangido de ter sua intimidade exposta tão subitamente em público. Não tô vendo nada, o que foi? Um… um… Um fio de cabelo branco? Isso! Olha! Mas que besteira, acontece. Acontece. Diz ela constantemente. Muita coisa acontece. Lembro da primeira vez que fui à escola. Na véspera eu alisei o meu uniforme no encosto da cadeira e passei inúmeras vezes a mão em cima da estampa de arco-íris presente na camiseta de poliéster. Nunca entendi como era possível no calor que fazia naquele interior perdido da Bahia as crianças usarem qualquer coisa que não fosse algodão. A indústria é o que há de mais moderno, até usar plástico travestido em tecido é o futuro. Fazia muito calor, a professora era uma moça meiga, falava devagar, e as crianças que éramos tinham os joelhos cheios de casquinhas. Acontece de às vezes a gente lavar o cabelo e encontrar um fio branco bem no meio da cabeça. Da mesma maneira que num dia qualquer, sem ser aniversário de ninguém, surpresa de natal no mês de março.  Voltamos da escola e em casa uma bicicleta nos espera. Um campo de futebol em terra batida foi o cenário perfeito. Medo e aventura numa descoberta inédita: o equilíbrio de pedalar. O movimento. A liberdade. E naquele dia eu criei o vento. A poeira subindo com uma freada brusca. Uma perda de confiança e outra casquinha no joelho. Acontece. Como acontece da gente esquecer das coisas. Lembrar é fácil. A gente vive lembrando. Queremos esquecer alguém, dá dois minutos, lá está o pensamento indesejado. Esquecer é que é o danado. Uma prova importante. Um fim de semana perdido estudando. O primeiro de alguns que se tornariam cada vez mais frequentes. O branco. Aquela sensação de algo errado na hora que não podia ser a mais certa. Não lembro. O que é mesmo que eu não lembro? Não consigo. Era. Aquilo que. Talvez se eu tentar me lembrar de outro jeito. Quando eu estava estudando primeiro eu vi. O que era mesmo? Acontece. Vai ficar chateada? Uma hora, sem querer também, a gente sente a primeira saudade. Uma dor física que não é bem doença. Toma uma aspirina. Abre a geladeira, mas não é bem fome. Um cansaço que não passa quando a gente dorme. Senta no sofá. E uma risada que fica se repetindo na cabeça, mas não tem ninguém aqui. A ausência. Acontece. Sempre acontece. Um dia a gente acorda e não tem mais dedos suficientes para contar as saudades. As cidades. As mudanças. Os anos. Mais um ano acontece. Hoje ainda conto só um fio de cabelo branco. Penteio. Seco. Passo os dez dedos abertos na cabeça e […]

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Encontrei meu fio de cabelo branco essa semana de novo. A primeira vez que ele apareceu foi no fim do ano passado. Entrei em pânico, sem saber o que fazer gritei pela Marcela. Olha! O quê? Olha! E a frase não saía completa. Eu só conseguia apontar pro coitado que àquela altura já devia estar altamente constrangido de ter sua intimidade exposta tão subitamente em público. Não tô vendo nada, o que foi? Um… um… Um fio de cabelo branco? Isso! Olha! Mas que besteira, acontece. Acontece. Diz ela constantemente. Muita coisa acontece. Lembro da primeira vez que fui à escola. Na véspera eu alisei o meu uniforme no encosto da cadeira e passei inúmeras vezes a mão em cima da estampa de arco-íris presente na camiseta de poliéster. Nunca entendi como era possível no calor que fazia naquele interior perdido da Bahia as crianças usarem qualquer coisa que não fosse algodão. A indústria é o que há de mais moderno, até usar plástico travestido em tecido é o futuro. Fazia muito calor, a professora era uma moça meiga, falava devagar, e as crianças que éramos tinham os joelhos cheios de casquinhas. Acontece de às vezes a gente lavar o cabelo e encontrar um fio branco bem no meio da cabeça. Da mesma maneira que num dia qualquer, sem ser aniversário de ninguém, surpresa de natal no mês de março.  Voltamos da escola e em casa uma bicicleta nos espera. Um campo de futebol em terra batida foi o cenário perfeito. Medo e aventura numa descoberta inédita: o equilíbrio de pedalar. O movimento. A liberdade. E naquele dia eu criei o vento. A poeira subindo com uma freada brusca. Uma perda de confiança e outra casquinha no joelho. Acontece. Como acontece da gente esquecer das coisas. Lembrar é fácil. A gente vive lembrando. Queremos esquecer alguém, dá dois minutos, lá está o pensamento indesejado. Esquecer é que é o danado. Uma prova importante. Um fim de semana perdido estudando. O primeiro de alguns que se tornariam cada vez mais frequentes. O branco. Aquela sensação de algo errado na hora que não podia ser a mais certa. Não lembro. O que é mesmo que eu não lembro? Não consigo. Era. Aquilo que. Talvez se eu tentar me lembrar de outro jeito. Quando eu estava estudando primeiro eu vi. O que era mesmo? Acontece. Vai ficar chateada? Uma hora, sem querer também, a gente sente a primeira saudade. Uma dor física que não é bem doença. Toma uma aspirina. Abre a geladeira, mas não é bem fome. Um cansaço que não passa quando a gente dorme. Senta no sofá. E uma risada que fica se repetindo na cabeça, mas não tem ninguém aqui. A ausência. Acontece. Sempre acontece. Um dia a gente acorda e não tem mais dedos suficientes para contar as saudades. As cidades. As mudanças. Os anos. Mais um ano acontece. Hoje ainda conto só um fio de cabelo branco. Penteio. Seco. Passo os dez dedos abertos na cabeça e […]

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