Crônica

Aqui na gringa #16

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Aqui na gringa #16 “Dançando na Praça Congo”, ilustração de Edward Winsor Kemble, 1886

Entre as tantas coisas que pratico aqui está um mergulho que tenho feito no debate sobre literatura afro-americana e literatura nativa americana. (Os nomes daqui, respectivamente: African American literature e Native American literature. Sempre a “America” ali significando Estados Unidos, nunca a América como continente.)

Leitura vai, leitura vem, me voltou uma velha lembrança, relativa a certas diferenças entre o destino da música popular no Brasil e nos EUA. Lembrei que alguém alguma vez disse, não sei onde, que aqui na gringa haviam sido proibidos os tambores, e que essa proibição teria sido importante para a música popular aqui ter encontrado caminhos diversos daqueles que ocorreram no Brasil.

Porque no Brasil, bá, a quantidade de modalidades de tambor que temos é qualquer coisa de extraordinário, confere? De sul a norte, onde houve pessoas negras – quer dizer, onde houve escravidão, que foi em praticamente todo o território – se desenvolveu o uso de tambores, ao ponto de eles estarem na alma de tudo quanto é gênero musical popular brasileiro, incluindo o universo das canções. (Canção: música com letra.)

O que eu sabia era isso: que, tendo sido proibidos os tambores, e sendo o batuque em tambores uma habilidade profundamente arraigada na vida africana, acima e abaixo do Saara, pode escolher – os tambores, segundo se sabe de relatos de viajantes e por observação etnográfica, eram meios de comunicação interaldeias, além de ser elemento de animação de festas e cerimônias religiosas – , os negros nos EUA teriam desenvolvido habilidades percussivas de outros modos. 

Outros modos: eles teriam usado qualquer coisa para dar ritmo, palmas, colheres, etc.; daí chegaram ao sapateado, batuque com os pés marcando ritmos sofisticadíssimos, cheios de pausas e cortes geniais. Outro jeito deles, talvez menos óbvio, é o jeito percussivo de tocar piano e violão. 

"Jigging" by Matt Morgan
“Jigging” (“requebrando”, uma antiga imagem de sapateado), ilustração de Matt Morgan (1837-1890)

Mas o que eu me botei a buscar: haveria documentação sobre essa proibição de usar tambores? E por que no Brasil não se proibiu? 

Enquanto isso, considera a diferença numérica da população afrodescendente no Brasil: segundo Manolo Florentino, no já clássico livro Em costas negras, entre 1501 e 1866, para o Brasil foram levados uns 5 milhões de africanos escravizados; para a América do Norte, menos de 500 mil; Caribe Britânico, 2,7 milhões; Caribe Francês, 1,3 milhão; América Espanhola, 1,5 milhão.

Quer dizer: para a América do Norte, basicamente para os EUA, uns 10% do total de africanos que foram levados para o Brasil. E no entanto, quando a gente pensa na representação de pessoas negras na vida pública – políticos, artistas, atletas –, parece que a população negra norte-americana seria parecida com a brasileira. E é historicamente bem menor!

Mas a tal proibição: achei uma lei, um código para os escravos, na Carolina do Sul, em 1740, que dizia, em seu artigo 36 (traduzo rapidinho aqui): “É absolutamente necessário para a segurança desta Província que todos os cuidados sejam tomados para restringir o uso ou a posse de tambores por parte dos Negros, porque em conjunto podem sinalizar ou noticiar um para o outro sobre seus malévolos desígnios e propósitos”. Essa proibição era política, em sentido amplo, e era religiosa, porque os protestantes puritanos abominavam tambor, talvez porque envolvesse diretamente o corpo – um batuque é sempre uma convocação direta para remexer, confere?

Quase nem precisa mais perguntas, meritíssimo. 

E assim foi. 

Mas nos EUA em conjunto houve uma região diferente: a Luisiana. Foi uma província francesa em seu começo, e francês quer dizer católico, em sua maioria. Católico não é tão diferente de protestante numa série de coisas, mas claramente a tradição católica é mais sensual – basta ver o Barroco, com sua pintura apelativa, comovente, corpórea. Pois justamente ali houve maior tolerância com os tambores, a ponto de ter sido estabelecido oficialmente um tempo e um local para as festas dos negros. 

Escuta esta: “Em Luisiana, durante o século 18, os escravos tinham os domingos livres, sem trabalho. Eles podiam ser reunir na “Praça de Negros”, informalmente chamada “Praça Congo”, onde os escravos podiam comerciar, cantar, dançar e tocar instrumentos”, diz Peter Kolchin, um historiador clássico no tema, com seu Escravidão americana (1619 – 1877).

Tem muito mistério ainda para pensar, mas as coisas vão ficando menos estranhas, nessa comparação de longo curso entre Brasil e Estados Unidos. 


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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