Crônica

Aqui na gringa #17

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Aqui na gringa #17 Retrato de George Armstrong Custer

Já contei que tenho aproveitado o tempo cá nos EUA, onde estou vivendo por um semestre, para estudar este mundo aqui – além de vivenciar as coisas comezinhas, é claro. A diferença de comida, as mudanças de paisagem, o gosto de água, o cheiro do sabonete, tudo isso que enfeita a vida de cada um e quase sempre fica invisível quando estamos mergulhados na rotina. 

Nem vou contar o tanto de vezes em que maldigo as pizzas pré-prontas aqui (a criatividade nesse item, por aqui, é escassa: tem pizza de queijo e de pepperoni, basicamente, com uma rara margherita, e era isso), nem as vezes em que suspiro lembrando de uma carne de rês preparada no fogo vivo. 

Andei lendo agora alguns ensaios de um livro debochado muito interessante, a começar pelo nome: Custer died for your sins, quer dizer, Custer morreu pelos teus pecados. O autor, já falecido, Vine Deloria, Jr., de ascendência Sioux, foi historiador e tal, é figura clássica no debate sobre a condição dos indígenas aqui (agora chamados ou de “first nations”, primeira nações, ou seja, nações antes de haver a nação estadunidense, ou de “native americans”, americanos nativos, termo este que vive em estado de tensão irresolvível, pro meu bico, porque a palavra “América” nasceu de um italiano, o Vespucci aquele, que estendeu seu nome para toda a terra descoberta – entre muitas aspas – pelo Colombo, por sinal outro italiano, de maneira que falar em americanos nativos já é um nó histórico em pelo menos duas dimensões).

A piada do título é que os cristãos usam dizer que Cristo morreu (na cruz) pelos pecados dos cristãos, quer dizer, morreu pelos pecados que ainda seriam cometidos no futuro; Custer foi aquele militar que se destacou na Guerra Civil, os Da Secessão, e depois foi chacinado numa batalha contra uma confederacão de tribos indígenas, na famosa batalha de Little Big Horn – em gauchês corrente, seria Guampãozinho, se é que faz sentido. 

(Nota à parte: Custer viveu entre 1839 e 1876; nasceu no mesmo ano do Machado de Assis, Paul Cézanne e o Rockfeller aquele, o nababo; mas morreu com menos de 40 anos.) 

Entre outras tantas coisas interessantes do livro, há uma citação de uma Proclamação, feita em 1755 (antes portanto da independência deles, que eles aliás chamam de Revolução), pela Câmara de Boston, uma das maiores cidades da costa Leste, aqui onde eu vivo agora. O secretário da Câmara fez saber aos então súditos ingleses que viviam ali que a tribo Penobscot era declarada inimiga, rebelde e traidora de Sua Majestade, motivo pelo qual ele fazia saber a todos que a partir daquele momento seriam pagos 40 pounds para cada escalpo de homens indígenas levados à autoridade, e 20 pounds para cada escalpo de mulher ou de homem abaixo de 12 anos. 

Escalpo, sim. Os brancos cristãos, encarregados de trazer a fé salvadora e a civilização ocidental para este confim do mundo, tinham autorização para escalpelar indígenas, homens ou mulheres, de qualquer idade. 

Não há como comparar horrores, naturalmente. Mas como terá sido entre nós, no futuro Brasil, pela mesma época? Esse confronto aberto e direto dos colonizadores da América do Norte contraste com um drible retórico praticado no Brasil. “O princípio dos direitos indígenas às suas terras, embora sistematicamente desrespeitado, está na lei desde pelo menos a Carta Régia de 30 de julho de 1609”, afirma uma especialista, Manuela Carneiro da Cunha, uma das maiores autoridades em história indígena em todo o país. (O livro de onde tirei a citação é o magnífico Cultura com aspas.)

O que a patifaria brasileira fez e continua fazendo até hoje é, em vez de dizer claramente que não vai reconhecer as terras dos indígenas, não reconhecer os indígenas como indígenas. Não é bem isso que faz essa tramoia legislativa do “marco temporal”? É sim; ela diz assim – “ok, vocês têm direito à terra; mas não podemos saber se o que vocês consideram sua terra é de fato sua, porque vocês não estavam aqui naquela data, logo…” Queriam que os indígenas tivessem com a terra a mesma relação estrita da propriedade, assinada em cartório, com carimbos e assinaturas, endereço e cpf; queriam que os indígenas não fossem, desde sempre, ou melhor, nunca tivessem sido indígenas, mas sim ocidentais.

Enfim: ou é escapelo puro e simples, ou é a negação cabotina de direitos farsescamente reconhecidos. O horror explícito ou o horror camuflado. 

Marco Temporal levará à extinção de povos indígenas e regularizará  grilagem", diz professor da USP - De Olho nos Ruralistas


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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