Crônica

Aqui na gringa #19

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Aqui na gringa #19 Foto: Arquivo Pessoal

Até o fim de semana passado, eu estava apenas na antessala do abismo estadunidense. Tudo que eu tinha visto e vivido ou era apenas uma amostragem desse abismo, ou era mesmo outra coisa. 

Não falo de Princeton, cidadezinha onde estou passando estes meses, uma bolha privilegiada, sede de uma grande universidade cosmopolita. 

Por exemplo: Nova York não é os Estados Unidos. É uma cidade do mundo, que casualmente está aqui. Foi a capital do século XX, como Paris foi a capital do século XIX, conforme a feliz imagem criada pelo Walter Benjamin. (O relativista que habita meu cérebro lembra: capitais dos séculos XIX e XX cá do Ocidente. O mundo é muito maior que o Ocidente.) 

Em Nova York tem o inglês e tem as coisas locais, a comida (ruim) de sempre, etc. Mas tem gente de tudo que é canto, tem atrações culturais emancipadas do local. Tem uma história arquitetônica, tem a história das imigrações, tem as excelentes conquistas da Harlem Renaissance, tem a Union Square, local de manifestações sindicais e progressistas. 

Ocorre que passamos o fim de semana último em Atlantic City. Por quê: porque meu filho foi jogar um torneio regional de vôlei. Uma experiência sensacional se desenhava. Ele joga num time meio improvisado, Princeton Volleyball Club, privado, que não é um clube no sentido associativo brasileiro. 

Em Porto Alegre, ele joga na SOGIPA, um clube nascido há mais de 150 anos que dispõe de muitas possibilidades esportivas. Por esse clube, ele disputou já 4 anos de campeonatos estaduais e 3 nacionais. Como é que rola? O clube, a SOGIPA, como os demais clubes, organiza as viagens, aluga a van e o hotel, o avião quando é o caso, e as famílias pagam parte dos custos e mandam os guris com um papel que os autoriza a viajar sem os pais. 

Aqui não. Tudo, além de bem pago, responde ao mandato do individualismo. Esse torneio em Atlantic City, por exemplo: cada família era responsável por levar o guri (para nós, implica alugar um carro) e por reservar o quarto no hotel. Ao menos o hotel é o mesmo para todos. Cada um por si.

Agora, eu não estava preparado para viver esses 4 dias num hotel-cassino estadunidense. Meldels. Olha só.

Isso é uma ínfima parte das centenas, talvez milhares de máquinas de jogo, das dezenas de mesa de pôquer e das outras dezenas de roletas. Sempre com uma música de fundo, uma coisa agressiva. Sempre essa luz artificial, sempre essas telas dominadoras. Sempre essa paisagem.

O hotel: a gente coloca o carro num edifício-garagem, imenso, uns 8 andares, centenas de vagas por andar, e atravessa uma passarela para entrar no prédio do hotel. Aí entra passando por dentro de labirintos com essas máquinas, por talvez uns 200 metros, talvez mais. 

Digo mal “prédio”, porque se trata de um conjunto de 3 torres e mais uns talvez 3 ou 4 prédios menores, tudo conectado internamente. A certa altura do domingo, nos demos conta de que estávamos vivendo há mais de 48 horas respirando apenas ar condicionado, sempre com essa luz artificial. Resolvemos sair um pouco de carro, ver a tal cidade, que é antiga, um balneário à beira do Atlântico, o mesmo que banha Cidreira e Garopaba, Ipanema e Iracema. 

A cidade em si tem uma parte antiga, com casas de estilo local, mas o que ressalta são os megaprédios de outros cassinos. Uma coisa bruta, que dói no olho. 

Uma tristeza. 

Para dar uma ideia do tamanho do hotel em que ficamos: foi dentro dele, num salão, que aconteceu o torneio. Procure imaginar, por favor, que se trata de um salão que acomodou nada menos que dez, exatamente, dez quadras de vôlei, com espaço suficiente entre elas para acomodar bancos para os reservas e umas poucas dezenas de cadeiras de assistentes. Um salão. Pé direito, talvez uns 8 metros, quem sabe um pouco mais. Um salão. De hotel.

Nessa imagem aqui acima aparecem (mal) 4 das 10 quadras. 

Aqui a quadra de número dez, numa selfie em que apareço com cara de pateta, ao lado da companheira Julia, minha digníssima. O 23 é o Benjamim, nosso filho. 

Outra coisa, talvez mais estranha ainda: a gente andava, entre a nossa torre e esse salão, o equivalente a uns 4 ou 5 quarteirões. No meio do caminho, a gente é obrigado a passar ao lado de um domo, sob o qual resplandece uma piscina. Isso mesmo. Um frio de rachar catedrais e o pessoal pagando 30 dólares a mais para ficar ali na piscina. E nela, como em toda parte, a presença obsessiva de telas, grandes ou gigantescas, que exibem esportes o tempo todo. Esportes, quer dizer, motivos de apostas.

A comida, quer saber? Medonha. Tem uns restaurantes caros num piso acima desse aí da piscina e das quadras de vôlei, mas aí seria acrescentar um rombo no orçamento ao horror estético e ético. Preferimos comer o que dava por ali mesmo. 

E nada falo sobre os tipos humanos, nem as roupas, nem os costumes de comida e comportamento. Nem precisa imaginar. 

Não por acaso, esta é a terra do Trump. Uma desolação. 

Aliás, digo apenas uma coisa sobre moda: o Trump parece mesmo ser o paradigma de uma tendência fortíssima – o franjão. A garotada cultiva com fúria esse elemento visual. 

Encerro aqui o relato desse lado obscuro, desse báratro infernal, que não é tudo que este país produziu – longe disso – , mas representa uma fatia deste mundo.  


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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