Crônica

Aqui na gringa #2

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Aqui na gringa #2 Foto: Luis Augusto Fischer

Fiquei devendo a piada de Deus, esse incrível personagem, quando estava criando as profissões. Não esqueci. Mas antes eu quero contar outra.

Que é a seguinte: em umas quantas vezes tenho me dado conta de que viver aqui, em Princeton, NJ, EUA, além de escandalosa e obviamente diferente, é também sutilmente distinto de viver em Porto Alegre e no Brasil. Conto duas.

A primeira: vou fazer minha carteirinha, num setor de identificação da universidade – a qual é tipo metade da cidade, mas deve ser uns 90% do pib daqui, tô chutando –, o camarada que me atende é um aluno que deve ter uma bolsa e por isso precisa dar expediente na burocracia, enfim, coisa conhecida. O cara me fotografa, me faz a carteira, me dá instruções, eu atendo, tudo certo.  

Aí ele me entrega a carteira, em poucos minutos, e eu, brasileiro e agora feliz porque deu tudo certo na burocra, estendo a mão enfaticamente pra ele, para agradecer.

Ele hesita por segundos, um segundo apenas, talvez, mas acaba estendendo a mão. E eu só me dou conta mesmo da minha inconveniência em estender a mão porque a companheira Julia, minha conje, está comigo e me dá esse toque, logo que saímos.

O caso é que ninguém dá a mão pra ninguém. Zero pessoas chacoalham a mão de zero pessoas.  

Quando fizemos a conta no banco, uma guria gentil, sorridente, fez tudo o que era necessário, foi irônica com as exigências burocráticas, nos deixou cem por cento à vontade. Terminou, voltamos outro dia, mesma simpatia, nos entregou os cartões e, bem, desta vez eu evitei dar a mão. Mas quero dizer que era óbvio que a gente devia ter apertado as mãos, carajo! Em que mundo vive essa gente?

(Um meme argentino, que adotei como verdadeiro para mim, pergunta: mas que selvagens são essas pessoas que saem pra rua sem um termo e uma cuia na mão?)

Agora a outra: fila do caixa de um superzinho amigo, comprando frutas. A caixa é claramente uma latino-americana, possivelmente guatemalteca, da vasta comunidade de seus patrícios por aqui (como já disse). Mas fala em inglês para os clientes. Até que embatuca com uma maçã. Olha, tenta discernir algo com que eu não consigo atinar. E eu digo: manzana. Podia ser óbvio, aliás era óbvio, mas não custava ajudar, já que os saquinhos aqui para agrupar frutas e tal são esbranquiçados, não muito transparentes (embora sejam “compostable”, compostáveis, decomponíveis ou como se queira dizer que não vão encher os oceanos com seus micropedaços).

Ela continua a examinar, nem pelota pro meu esclarecimento. A já citada companheira Julia me diz em português, baixinho: ela quer saber qual maçã é. Ah, sim. Eu retorno rapidinho para a seção de frutas.

(Mas calcula que são uns dez passos só, esse súper é do tamanho de um armazém grande da minha infância, não muito mais, tipo o Armazém Schneider, sabe? Ficava ali na esquina da Doutor Timóteo com a Cristóvão, onde a gente fazia ranchos e eu ficava siderado com o cara catando latinhas lááááá de cima, com uma pinça posta na ponta de uma haste imensa. Como ele sabia fazer aquilo? O certo era que naquele mesmo dia, no fim da tarde ou começa da noite, um carro, acho que do próprio Schneider, levava o rancho lá pra casa. Com aquela lata!)

Voltei ao caixa e disse: Pink Lady apple. A moça do caixa, que eu tomei por guatemalteca, nem me olha, simplesmente escreve um número ali, e era isso. Total tanto, pagamos e saímos.

Aí a sempre presente (ainda bem) companheira Julia me diz: não convém tu falar espanhol assim. Assim como?, pergunto eu, crente de que era uma gentileza ter dito a palavra na língua nativa dela. Ela responde: é invasivo. Eles acham invasivo tu pressupor que ela fala espanhol. Pode soar como preconceito.

Meldels.

Quer dizer: vivendo e desaprendendo.

E a tal piada de Deus?

Bá, fica pra outra.

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