Crônica

Aqui na gringa #20 – Final

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Aqui na gringa #20 – Final Foto: Arquivo pessoal

Seis meses é pouco tempo? Muito? Mais ou menos?

Tem aquela piada do Einstein. Perguntado numa escola sobre a relatividade, se ele podia dizer em poucas e simples palavras a coisa toda, ele responde: basta comparar o tempo de um minuto em que um sujeito passa com a mão na chapa quente do fogão com um minuto que o mesmo sujeito passa beijando a namorada. O minuto é o mesmo, mas não é. 

Esse meu Einstein é velho a ponto de pensar em chapa de fogão, a lenha portanto, mas tem um humor bem ao ponto. Concorda? Ou é relativo?

Estamos encerrando esse semestre passado aqui, em Princeton, estado de Nova Jersey, EUA. Vizinho de Nova York, um estado da costa leste que fica pouco acima do sul, o que quer dizer que historicamente aqui foi um ponto médio entre a plantation do sul (tabaco, algodão, trigo), escravagista, e o norte, berço das primeiros colônias europeias, região que se industrializou mais cedo. Aqui teve escravidão de africanos e descendentes, mas em escala bem contida.

Mas, como em toda parte das Américas, havia indígenas por aqui – curiosidade linguística e profundamente histórica: eles aqui se referem às várias etnias, aldeias, enfim aos que viviam aqui, como “first nations”, primeiras nações. 

Por um momento, pensa por contraste: como nós, no Brasil, nos referimos aos indígenas, ontem e hoje? Para começar, nunca os reconhecemos como pertencentes a nações, mas a tribos, aldeias, regiões, línguas. A diferença que a palavra faz: ao qualificar como primeiras nações, os estadunidenses os medem pelo seu próprio metro civilizatório: o que fazemos, no Ocidente, é sempre pensar segundo nações, que eventualmente coincidem com países, mas nem sempre. No Brasil, no máximo se usa o termo “povos originários”. Povos, não nações. Faz uma diferença importante.

O Brasil tem, nessa conta, várias nações. As indígenas, se usarmos os critérios daqui, mas também aquelas que o tempo forjou, ao longo do processo histórico. Creio que dá pra falar em uma percepção de nação entre cariocas, ao menos os da cidade do Rio, toda uma civilização; paulistas, tanto os que vivem nos limites do estado da federação brasileira quanto regiões incorporadas ao seu estilo de vida; gaúchos; amazônidas talvez; sertanejos; baianos; pernambucanos. 

A gente tem um traço que daria para muita conversa ainda: a mania de pensar que tudo é e deve ser sempre unificado. Está representado no governo central asfixiante que temos, herança do modo de ser do império romano e do império português – epa, e do império brasileiro, não esqueçamos, porque este foi o nome do nosso país entre 1822 e 1889! 

Ainda hoje a gente pensa no nosso país como tendo apenas uma língua! As dezenas de línguas indígenas são, para o brasileiro comum, como as folhas das árvores da Amazônia, uma coisa sem relevância. 

Ocorreu que visitamos Washington, a capital federal, esses dias. Fica a umas 3 horas daqui, estrada sempre boa e confiável. (Tinha trem também, mas ficava bem mais caro do que alugar um carro. Estamos na terra do automóvel, claro.)

Nosso foco foi para dois museus: o Museu Nacional de Cultura e História Afro-Americana e o Museu Nacional do Índio Americano – sim, senhor, o nome é este mesmo, National Museum of the American Indian. O nome aqui é toda uma questão, porque hoje é clara a tendência de usar o termo “indigenous people”, indígenas, ou “Native Americans”, nativos estadunidenses, ou ainda “first nations”, nações originárias. Como se explica o uso do termo aparentemente superado? Talvez pela data de construção do museu, que completa 20 anos agora. 

Os dois são geridos pelo Smithsonian Institute, uma megaestrutura que cuida de pencas de museus e outras instituições. E os dois têm um claro viés pedagógico. 

O Afro-americano tem todo um percurso cronológico que vem da África até o presente. Para quem conhece a historiografia dos últimos dez ou vinte anos, as informações ali expostas não surpreendem, mas os visitantes não a conhecem, em geral, e por isso a visita tem todo um traço de atualização, que carrega consigo uma forte carga de novidades. 

A cara externa do museu afro-americano: conversa com uma imagem de cesta artesanal, ou de um monumento feito com tramas, sei lá. Lindo. Mas a visita é soturna, em sua maior parte. Todo o horror da escravidão, mas também as incontáveis ações pela libertação, protagonizada na maior parte por escravizados mesmo. Todo o racismo explícito do tempo da lei Jim Crow, o conjunto de regras que estabilizaram e deram cara de legalidade à discriminação das pessoas negras – que a gente vê em filmes de vez em quando, como aqueles ônibus, bebedouros, escolas segregadas.

Uma seção é particularmente emocionante: Emmett Till, um adolescente de 14 anos, foi trucidado por brancos, em 1955, numa cidadezinha do Mississipi, ficando com o corpo desfeito (um olho foi-lhe arrancado); e sua mãe, Elisabeth Mamie Till, resolveu fazer um velório deixando aberta a tampa do caixão, para que todos vissem. E todos viram. A história está na Wikipedia, para quem quiser conferir.

Trata-se, no museu, de uma sala separada, com avisos de que se trata de cena contundente. Lá dentro, está o caixão do rapaz, aberto, exposto como num velório propriamente dito, as pessoas passando ao lado dele, e fotos da mãe, do menino, das pessoas que acorreram ao velório. Juntei meu choro ao de tantos que por ali passaram.

E tem o outro, o Museu do Índio. Outro papo, tão interessante quanto. O tempo todo eu ficava pensando no Brasil, no que poderíamos e deveríamos fazer para dar a ver coisas do passado que já sabemos, entre historiadores, mas que ainda não conseguimos corporificar em museu. 

Uma linda exceção que conheci: no museu da UFRGS, que mantém atenção para o tema, uns anos atrás hospedou uma excelente exposição, que pode ser revista aqui

Que troço monumental, lindo, desconcertante. E a cor? De terra. E o entorno? Onde seriam jardins ocidentais, tem como se fossem canteiros plantados à moda indígena, como que ambientando fora o que o visitante vai ver dentro. 

Também didático, também com uma seção ligada ao presente – no Museu Afro-americano tinha uma extensa seção para as artes protagonizadas por afrodescendentes, ausente deste aqui, relativo aos indígenas, provavelmente porque há menos descendentes das primeiras nações que conseguiram produzir arte que tenha entrado no circuito de massas. Mas há uma seção forte do presente: uma sala com centenas de cartazes e objetos que de algum modo aproveitaram algo dos indígenas, desde a palavra “tribo” para designar a família, num anúncio de caminhonete, até uma réplica do Tomahawk, aquele míssil. Clichês que povoam nossa mente. 

Para não encompridar, vou dar um lindo e raro exemplo: em certo momento, relativo ao final do século XIX, aparecem uma pintura (em estilo ocidental) e ao lado um couro curtido de algum bicho contendo muitos pequenos desenhos, como que feitos por crianças. A pintura ocidental é esta aqui: 

Num cartazete ao lado, ficamos sabendo que o quadro se chama “American progress” e foi pintado por um certo John Gast, em 1872. Como se vê, peregrinos brancos avançam para o oeste, cumprindo aquilo que os colonizadores chamaram de “destino manifesto”, uma espécie de determinação divina (aqui evocada por esse anjo em primeiro plano) para que os brancos expulsassem os indígenas e tomassem conta de suas terras. 

Ao lado dessa pintura, este couro: 

Ao lado, um cartazete esclarece: pintura (feita por volta de 1890) de indígenas Cheyenne do norte, registrando a batalha de Little Big Horn (a batalha ocorreu em 1876). Os desenhos representam os indígenas Lakota, Cheyenne e Arapaho defendendo sua área de caça contra a chegada das tropas do famoso general Custer.

Mesma época, mesmos fatos de base, duas linguagens distintas e dois pontos de vista opostos. Entre as duas obras, um cartaz didático expõe o confronto: 

O prezado leitor vai desculpar as óbvias falhas da foto, feitas por mim mesmo. Vai perdoar porque o contraste não podia ser mais explícito. 

É isso. Essa gente estadunidense tem vários defeitos, mas tem uma boa virtude, que poderíamos aprender: encaram, pelas instituições, seus fantasmas. 

Até mais ver!


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Com a crônica desta semana encerra o semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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