Crônica

Cidade Baixa, meu território negro do carnaval

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Cidade Baixa, meu território negro do carnaval Ana Dos Santos. Foto: Rogério Marx Jr. @empoderapreta

E o carnaval/ Ciência e filosofia/ Que domina o mundo inteiro/Simplesmente em três dias…” (Elza Soares)

Sou cria da Cidade Baixa. Nasci e morei boa parte da minha vida nesse bairro. Meus pais vieram de Alegrete nos anos 70 e se fixaram nesse território negro, de classe média baixa. Fica perto do Centro Histórico, o que nos possibilitava fazer tudo a pé. Mas quase ninguém queria morar num local próximo ao rio Guaíba, porque o trauma da enchente ainda assombrava a memória de Porto Alegre.

A Cidade Baixa era um bairro familiar, tranquilo, perto da Redenção, onde estávamos sempre nos momentos de lazer, fazendo piqueniques nos finais de semana. Andávamos de bicicletas que eram alugadas em volta do lago, cheio de curiosos e crianças atirando pipoca e farelos de pão para alimentar os peixes. Às vezes, andávamos nos pedalinhos e víamos de perto as tartarugas pré-históricas que moravam ali. Não dá pra acreditar que hoje, 2023, querem privatizar a Redenção…

Tive uma infância feliz com minha mãe, meu pai e meu irmão. O trabalho deles era no Centro e nossas escolas eram próximas da nossa casa. Minha mãe, cansada de andar de ônibus no interior, queria que a gente não precisasse passar por longas viagens e gastos de tempo e dinheiro. Morando na Cidade Baixa, também tínhamos acesso à vida cultural da cidade, como teatros, cinemas e shows. O casal saía nos fins de semana para dançar black music nas boates e sambar nas quadras das escolas de samba.

Meu pai era um sambista nato. Tinha orgulho de ter um aparelho de som stereo, que nos domingos tocava música bem alto para a vizinhança ouvir. O frango de padaria, a cerveja e os cigarros eram presença certa na mesa. Wilson Simonal, Roberto Ribeiro, Os Originais do Samba, foram minha primeira escola musical.

 O Gléber era conhecido pela sua simpatia, sorriso largo e gargalhada escancarada. Um negro alto e com um black power de respeito, chamava atenção onde quer que fosse. Herdei dele essa presença e a alma festeira que transformava qualquer ambiente onde estivesse. Nos sábados, ele ia religiosamente a um boteco “pé sujo” na rua da República e levava as crianças com ele. A gente gostava porque sempre podíamos tomar guaraná à vontade e mascar chicletes, em meio aos “tiozinhos” que bebiam todas com ele, antes do almoço com as patroas, que aguardavam em casa.

Logo em seguida, minha avó e minhas tias vieram de Alegrete para morar na Cidade Baixa também. Minha avó Martina, junto com seus irmãos, formavam uma família de músicos que faziam bailes em Alegrete, tocavam vários estilos musicais na casa dos meus bisavôs, que cuidavam dos bons modos e maneiras dos convidados, lugar onde os negros podiam dançar à vontade, já que na segregada Alegrete pessoas negras não podiam frequentar clubes, CTGs e certas calçadas reservadas só para brancos… 

Chegando em Porto Alegre, a Martina manteve a tradição do baile. Num apartamento amplo, com uma sala enorme, nos domingos sempre acontecia o almoço da família. Vinham meus primos e meus tios, e quase sempre aparecia um amigo próximo ou um parente de Alegrete que estivesse de passagem na cidade. O baile agora era de toca-discos e LPs. Entre vanerões e chamamés, César Passarinho cantava a nostalgia e a melancolia dos que tinham saudades da vida no campo.

Minha avó era uma matriarca que mandava em tudo e todos. Ai de quem não dançasse! Todos tinham que dançar, em pares. Ela ficava sentada observando e corrigindo os bailarinos. As crianças também tinham que aprender a dançar. Essa foi minha primeira escola de dança e, modéstia à parte, sou uma grande bailarina. 

Depois da música nativista, começava a hora do samba. Estávamos saindo dos anos de chumbo da ditadura e a perseguição ao gênero musical foi afrouxando. Clara Nunes, Martinho da Vila, Elza Soares, eram os embaixadores do ritmo. Junto com Beth Carvalho, Alcione, João Nogueira, sambávamos felizes até o final do domingo. 

Quando chegava o Carnaval, íamos todos, de mala e cuia, para a casa da minha avó. Nosso programa era assistir a transmissão dos desfiles das escolas de Samba do Rio de Janeiro. As mulheres passavam o dia na cozinha fazendo quitutes e lanches para atravessarem a noite assistindo tevê e sambando. Cada um tinha a sua escola de coração, havia brigas e apostas: Portela e Mangueira eram as preferidas.

Eu ficava fascinada vendo as passistas, para mim eram princesas, rainhas, com plumas e paetês, e eu queira ser uma delas. Aliás, na infância de uma menina negra nos anos 80, era esse o meu referencial de beleza. Eu tinha orgulho de ser parecida com elas. Tinha orgulho de ver tantas pessoas negras desfilando, com toda pompa e circunstância, com uma alegria que contagiava a todos nós, e não nos restava outra alternativa a não ser sorrir e sermos felizes também. Acho que o Carnaval é sobre isso.

Sambar não é fácil, é preciso harmonizar braços, pernas e quadris nesse jogo. Minha avó comandava: “Abre as pernas e solta a bunda!”. E a gente não sabia se ria ou soltava o nosso patrimônio quimbundo! Ansiosa por dominar essa técnica, me entregava de corpo e alma para a aprendizagem. Até que minha tia Gemina deu a ideia! Não sei onde ela viu esse truque, mas pegou uma toalha e começou a deslizar em cima, era mais fácil de se soltar, já que não estávamos nos equilibrando em sandálias de plataforma. “Samba assim, samba, sambei!”, Criolo cantou, anos mais tarde.

A casa da minha avó era na João Alfredo, uma rua abaixo da avenida Perimetral. E era ali, na nossa cara, que aconteciam os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre. Havia, e ainda há uma inevitável comparação entre as escolas do Rio de Janeiro e as de Porto Alegre, e provinciano é quem ainda compara! Os desfiles começaram a ser transmitidos pela tevê e as mais velhas começaram a se questionar: “Por que a gente não ia ver de perto?”

Uma família de professoras e comerciários não conseguiria comprar ingressos para todos nas arquibancadas. Então, começamos a inspecionar o local. O povo que faz o Carnaval, que vinha das periferias, com toda a família, também não tinha como comprar os ingressos para o show. E com aquele “jeitinho brasileiro”, que eu chamo de sabedoria, se acotovelavam na dispersão das escolas. E ali, com os olhinhos brilhando, eu vi de perto os carros alegóricos. “Uau!” eu pensava, “isso existe e está na minha frente”. Um mundo de brilho e fantasia!

Bambas da Orgia e Imperadores do Samba agora eram nossas agremiações! E como não conseguíamos ainda assistir os desfiles, nem no Rio de Janeiro, nem em Porto Alegre, novas estratégias surgiram pra gente pular o Carnaval, como comprar os LPs dos Sambas-Enredo de cada ano. Meu pai foi visitar os irmãos que moravam no Rio de Janeiro e que na época já desfilavam na Mangueira. Ele foi o primeiro da família a assistir os desfiles e ali sentenciou: “Agora posso morrer em paz!” E um ano depois foi o que aconteceu, deixando como exigência para minha mãe um samba-canção de Noel Rosa, cantado por Nelson Gonçalves no velório: “Quando eu morrer/ Não quero choro, nem vela/ Quero uma fita amarela/Gravada com o nome dela.” 

Os moradores da Cidade Baixa arranjaram o seu jeitinho de acompanhar os desfiles sem pagar. Atrás das arquibancadas, famílias inteiras iam com cadeiras de praia e comida para assistir de longe à passagem dos altos carros alegóricos, ouvir o samba ao vivo e a cores, e com muita sorte, “pular” pra dentro de uma arquibancada. Com o tempo, a própria organização, lá pelas 3h da manhã, liberava aqueles lugares vazios, de quem comprava e não comparecia. Aliás, deve ser assim em todo o Brasil, antes mesmo do aparecimento dos “cambistas”. E até hoje, na passagem da última escola, o povão vai sambando atrás!

Infelizmente, vivi pra ver esse Carnaval sair do seu território e ser deslocado para um lugar chamado “Porto Seco”, que mais parece um nome amaldiçoado, de um lugar sem água, sem alma… De difícil acesso, não vou comentar aqui os trezentos mil motivos dessa piora, até porque temos um nome científico de um sintoma que nós, negros, conhecemos muito bem: racismo estrutural. Condizente com a “higienização”, “embranquecimento” e “especulação imobiliária” da cidade, que vem “empurrando” desde sempre a população negra de Porto Alegre para as periferias. Eu chamo de “apartheid”, mesmo!

A Cidade Baixa ficou cara pra gente continuar morando ali, com a chegada dos bares e da boemia. Hoje tem gente que chama até de bairro “hispster”, com seus artistas, intelectuais e boêmios. Mas continuo frequentando, porque a alma carnavalesca é uma das essências do bairro! Anos depois, casada e com meu filho, comecei a pular Carnaval com os blocos que foram surgindo: “Maria do Bairro”, “Areal da Baronesa”, “Areal do Futuro”, “Bloco da Laje”, “Ziriguidum”, “Do jeito que tá, vai!”, “Galo do Porto”, “Deixa falar!”, “Panela do Samba”, “Puxa que é peruca”, e desculpem se esqueci de algum. 

O território negro do meu Carnaval resiste e insiste em festejar! Nesses dias é comum encontrar gente fantasiada nas ruas, nos supermercados e mercadinhos, comprando bebidas e gelo para levar no isopor. Às vezes tem mais de um bloco por dia, alguns clandestinos, mas os bares e o comércio não reclamam, só os moradores…. Vem gente de todos os cantos da cidade e até de outras cidades, de todas as cores, gêneros, classes e orientações. Ainda é uma festa popular e democrática, e eu só peço uma coisa para os carnavalescos: “Não deixem o samba morrer!”, na Cidade Baixa!


Ana Dos Santos é poetisa e professora.

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