Crônica

Cinema acessível

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Cinema acessível

Quando entrei na sala da Casa de Cultura Mario Quintana, minha expectativa era só a de acompanhar o bonito trabalho do Sid Schames, meu amigo de uma vida toda (fui colega da Katia, sua doce mana mais nova, no mesmo Colégio Israelita Brasileiro onde ele também estudou). Legal. Me acomodei numa poltrona tri a fim de ver o projeto do Sidão, que é músico (baterista) e no meio artístico se tornou conhecido pelo adequado apelido de Sidito Magnífico. Mas eu não tinha a compreensão até aquele momento do quão inovador, imenso, amplo e intenso é o Festival de Cinema Acessível que ele criou com a parceria entusiasta da sua companheira, minha também amiga Ana Ferreira. Tudo parecia muito dentro dos padrões conhecidos em projetos desse tipo, padrões maravilhosos, claro. 

Até que vi, uma fila à frente, aquela senhora negra, pobre e cega com seu netinho de 11 anos. Ambos moradores da periferia, pegaram dois ônibus para a realização daquilo que era um sonho até então aparentemente inalcançável. Quando começou a projeção de Capitão Rodrigo, foi “muy lindo” (como diria Pedro Missioneiro, pra ficar na mesma saga verissima) o que vi: a senhora chorava de emoção, o menino enxugava suas lágrimas, e eu quase pedia que ele enxugasse as minhas. 

Tenho certeza de que essa cena eternizada na minha retina resume o festival, evento que vai muito além do trivial. Em outras palavras, trata-se do maior evento de inclusão possível, porque atinge todos os limites, ao pensar nas diversas deficiências e ser gratuito. Mais ainda: por permitir que pessoas como eu, totalmente dentro do que se considera a normalidade, rompa a falta de visão ao outro e o tire da invisibilidade. Ali eu entendi a transcendência de levar uma pessoa como aquela senhora pela primeira vez ao cinema em seus 80 anos de vida. Troço emocionante, meu!!! O festival de cinema acessível nos impõe o sentimento lindo da empatia radical. Tira uns da invisibilidade cruel e outros do comodismo de só olhar pro próprio umbigo e nem perceber. 

Naquela tarde, embalado pelo amor que a arte do Erico me desperta, me apaixonei. Não pelo Sidão, pela Aninha e pelo David, filho de ambos e inspirador da versão “kids” do festival ao se dizer excluído das exibições adultas por ser criança (uau!). Por esses, eu sempre fui apaixonado! A paixão, agora, era pela obra de generosidade e profundo humanismo que eles criaram. O Festival de Cinema Acessível me fisgou pelas lágrimas, e desde então eu sou uma espécie de Dartagnan desses três queridos mosqueteiros cheios de Schames, charme e chamas que aquecem tanta gente desprovida dos sonhos que a magia do cinema proporciona. 

Pois marque na sua agenda: este sábado, 22, será o dia em que todas as pessoas, independentemente de terem baixa visão, alguma deficiência auditiva ou outras quaisquer limitações, poderão ir ao cinema juntas. Os filmes, com LIBRAS, audiodescrição e legenda descritiva, podem ser vistos por pessoas com deficiências auditiva, visual, cognitiva e intelectual. As tecnologias são produzidas e apresentadas pelo Som da Luz Estúdios, do Sidão.

Com sete anos de existência e já tendo levado quase 15 mil pessoas ao cinema em cidades gaúchas, catarinenses e de outros Estados, o festival tem recebido forte e justo reconhecimento nacional, ampliando seu alcance e emocionando quem o acompanha desde o início. 

Já recebeu as chancelas da Unesco, do Senado, do Criança Esperança (a versão kids, claro). O sucesso é retumbante!

Avatar será exibido na Sala Redenção (da UFRGS), na Rua Sarmento Leite, 450, às 15h deste sábado – e haverá reprise em 26 de outubro, com duas sessões direcionadas a escolas, no mesmo local, às 9h e 14h

É interessante sublinhar que a exibição antecederá o esperado lançamento no Brasil de Avatar 2, a continuação do filme, em 15 de dezembro (Avatar foi considerado o mais lucrativo da História no quesito bilheteria, com arrecadação de incríveis US$ 2,84 bilhões em todo o mundo quando foi lançado).

A ousadia de descrever cenas de alta plasticidade, depois de já ter feito o mesmo com a magia de Harry Potter, é tida como um passo adiante no trabalho inovador do Som da Luz Estúdios.  

O festival é uma oportunidade preciosa e única para quem nunca teve a experiência de ir ao cinema. Para quem não tem limitações auditivas ou visuais, além de eventualmente acompanhar alguém que as tenha, é a chance de viver uma grande experiência, de se colocar no lugar do outro e ter uma vivência extremamente humana e enriquecedora.

As pessoas com deficiência costumam definir a experiência como “libertadora”. No caso específico da versão “ficção e aventura”, o evento tem forte cunho educativo ao possibilitar que crianças e jovens, público afeito a esses gêneros, convivam com as diferenças e aprendam a exercitar a empatia.

O formato pelo qual as tecnologias são inseridas nos filmes é pioneiro e único: são apresentadas de forma simultânea e sem sobreposição à obra, o que proporciona o convívio entre pessoas com e sem deficiência.

As pessoas com algum tipo de deficiência severa são um quarto da população brasileira, conforme o IBGE. Em números precisos são 45 milhões de pessoas, ou seja, exatos 23,94% da população brasileira (no Rio Grande do Sul, há aproximadamente 2,5 milhões de pessoas com deficiência, o que equivale a 23,84% da população (percentual semelhante ao nacional).

É importante, ainda que se saliente o seguinte:  nesses números não estão computados idosos e pessoas com perda auditiva ou de visão causada pelo diabetes.

Os filmes apresentados desde 2015 foram O Tempo e o Vento, O Homem que Copiava, Saneamento Básico, Tropa de Elite 1, Dois Filhos de Francisco, Se Eu Fosse Você, Tropa de Elite 2, O Palhaço, Malévola, Meu Malvado Favorito, Universidade Monstros, Divertida Mente, Frozen – Uma Aventura Congelante e Harry Potter.

A entrada será gratuita, o que amplia ainda mais o caráter inclusivo do evento. Em cada sessão, são distribuídas vendas antes de se iniciarem os filmes. Objetivo: proporcionar que aqueles que não têm deficiências possam vivenciar a experiência de assistir a um filme do ponto de vista de uma pessoa com deficiência visual.

Por meio da Lei de Incentivo à Cultura (antiga Lei Rouanet), o festival tem o patrocínio de Banco Renner, Bem Promotora e TransUnion. 

“Temos a certeza de que contribuiremos para a construção de uma sociedade mais justa de forma natural”, diz o Sidão. Puxa! Como precisamos disso nestes tempos distópicos de trevas inacreditáveis e monstros, infelizmente, reais.

Precisamos de arte e luz! Luz, câmera e ação! Sejamos solidários, empáticos e humanos. O Brasil e o mundo precisam reagir.


Léo Gerchmann é jornalista formado na Fabico (Ufrgs), com trajetória nas redações dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e na Revista Placar, tendo sido correspondente da Folha em Buenos Aires. É autor de livros como “Coligay, Tricolor e de todas as cores”, “Somos azuis, pretos e brancos” e “A fonte: a incrível história de Salim Nigri”

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