Crônica

Clube dos Artistas

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Clube dos Artistas Pavilhão no Gasômetro, 2000. Ilustração: Edgar Vasques

*Diversas imagens de Edgar Vasques homenageiam Porto Alegre na edição 67 da Parêntese. Você pode ver o ensaio gráfico completo na seção cartum. 

Quando os dias de véspera chegavam, nem bem virada a página do Natal, o clima da nossa casa, da nossa rua, da nossa Vila Vargas mudava. Largávamos os piões, bolitas, bonecas, pandorgas, e nos entregávamos à aurora de outro tipo de alegria.

Não era motivo de praia, que isso já não esperávamos. Os pais ensinavam a engendrar a vida mais valorizando o que tínhamos do que sofrendo pelo que não havia condições de se ter.

O verão naquele tempo – fim dos anos 80, quiçá início dos 90 – era momento de esquecer que havia colégio, de correr rua com os amigos e de reforçar a espera ativa pela chegada do carnaval.

Digo ativa porque as mães desde sempre cultivavam em nós a raiz cultural: o bloco da família, a tribo da rua e becos associados e o grupo carnavalesco da vila. Assim seguíamos atentos para o que pudesse ser utilizado para fazer fantasias. Um plástico brilhoso encontrado na rua era ligeiramente recolhido. Sacolas coloridas também. Ráfia, tule, fitas, tudo ganhava outra dimensão. E criávamos. Não existia erro: um ponto de agulha, um grude de cola ou um novo nó fazia cessar o choro, resgatava o alegórico sorriso de criança.

Chegado o dia e a hora, sabíamos: pintados, éramos deuses e deusas foliões. Afobados, pés em chinelos, sandálias ou Kichute, levados por nossas mães ou na carona de alguma família vizinha, subíamos vielas, descíamos lombas, saudávamos a sede dos Comanches no caminho, vencíamos as ruas até a Bento Gonçalves. Ali no número 5720 havia um bailão que organizava festas de carnaval para a comunidade, o Clube dos Artistas. Lá se encontravam moradores das imediações da Intercap, Morro da Cruz, Vila Vargas, Lomba do Pinheiro e até Viamão.

O sol a pino do dia dava descanso ao telhado de zinco com a chegada da noite. De longe, avistávamos a fila na entrada: piratas, princesas, bruxas, paquitas e havaianos não faltavam. Os adultos acenavam, alguns se recordavam do ano anterior. O retumbar do som lá dentro nos ansiava. Em muito já não incomodava o derreter da pintura, o pinicar do chapéu de palha, das lantejoulas, franjas e babados. 

Lá dentro, varando, tudo era maior do que nossos olhos infantis podiam lembrar. Aquele espaço de ser feliz pra sempre por algumas horas no meio da cidade nos pertencia.

Este texto começou a ser escrito em algum momento do ano passado, quando da janela do ônibus avistei o Clube dos Artistas da minha infância transformado em um destes atacadões de móveis. As partes que conseguimos carnavalizar do passado são as que nos salvam do presente em permanente desencanto.

Hoje nossos corpos em memória e fantasia esperam o momento de brilhar, abraçar sem medo e festejar sorrisos. Queremos a felicidade natural de estar entre os nossos, saudar quem se foi e de ser pelo tempo que a música tocar e depois.

É direito o encontro, o encontro com o carnaval, o momento de recriar na rua, na quadra, no Porto Seco, a imortalidade à base de corpos em samba enredo de esperança. 

Artistas que somos, vamos nos reinventar, Porto Alegre. Com saúde. Sempre contigo. Parabéns!


Tônio Caetano é escritor, especialista em Literatura Brasileira pela PUCRS e servidor público municipal. É filho de Virginia e Armindo, pai da Safira e dindo do Guga, da Sarah e do Ique. Cresceu correndo com os seis irmãos pelas lombas da Vila Vargas, periferia de Porto Alegre. ​Autor do livro “Terra nos cabelos”, Prêmio SESC de Literatura 2020 na categoria Contos, Editora Record, e do livro “Sobre o fundo azul da infância”, Editora Popular Venas Abiertas.

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