Crônica

Com um caderno de anotações e uma caneta no bolso

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Com um caderno de anotações e uma caneta no bolso

Depois de mais de dois anos separados pelas telas do ensino remoto, os alunos da disciplina de Jornalismo e Cultura do curso de Jornalismo da UFRGS voltaram às aulas presenciais em junho de 2022 e aproveitaram para botar os pés nas ruas de Porto Alegre. Desse encontro tão aguardado, resultou o livro Caminhos na Cidade Baixa disponível gratuitamente online através do sistema de bibliotecas da Universidade. Como dissemos na apresentação do volume, o jornalismo sempre foi um narrador potente da cidade. Fez da construção da rua um de seus espaços mais emblemáticos. E tendo consciência do quanto este campo profissional deixa ver apenas segmentos de uma cidade mediada, nem sempre a cidade vivida, é que esta turma em formação buscou registrar instantes e cenas cotidianas.

 Com um caderno de anotações e caneta no bolso, os 11 alunos saíram a explorar um bairro dividido entre o dia e a noite. Antes de cada saída, o caminho foi sendo preparado aos poucos pelas leituras em fragmentos de Stuart Hall, bell hooks, Antonio Candido, J. Culler, Eclea Bosi, Raquel Rolnik. Baseados na tradição da crônica brasileira, buscamos entender a dimensão narrativa como forma de dar sentido à nossa experiência, e a crônica um gênero (nada fácil) de escrever ao rés do chão, de fazer o banal alçar voo.  Entre um seminário e outro, havia uma deriva no bairro e o convite a formar repertório na companhia de Lima Barreto, João do Rio, L.F. Verissimo, Joseph Mitchell, Susana Vernieri, Caio Fernando Abreu e outros tantos. 

Tal qual antigos (!) flâneurs que devaneiam pelas calçadas das grandes cidades, propusemos duas saídas: primeiro, uma imersão solitária pelo bairro, exercício de observação, partindo do espaço como relação social. Depois, uma caminhada coletiva acompanhada de histórias, com a jornalista e estudante de Museologia Susana Pohia apontando trajetos que um dia foram de escravos fugidos, subalternos da Cidade Alta, lavadeiras à margem de um arroio. Vimos, juntos, o mapa de abolicionistas e republicanos inscrito nas placas de rua, os sobrados alinhados, um velho pau-brasil sozinho entre as árvores. Queríamos entender a Cidade Baixa diurna e a CB, como é chamada à noite, capaz de provocar sensação de liberdade para quem é – ou foi – jovem na esquina da Lima com a República.

Dessas experiências e dos registros feitos nos cadernos individuais, produzimos as crônicas que foram lidas e revisadas pelo grupo. Em boa parte delas, emerge uma espécie de escritas de si, traduzindo os lugares pelas experiências e pelos afetos vividos. As memórias da infância, o cheiro de café e da ressaca na madrugada, o primeiro rolê, a atenção às grades, aos grafites, aos anúncios, à vegetação predatória que se espalha tanto quanto os investimentos que rompem a linha horizontal do bairro. Não foi à toa a escolha do grafismo e da cor sépia da edição. Há algo de melancólico no conjunto de textos, o dar-se conta do quanto aquele lugar, atravessado de ruídos e boemia, muda de pele decorrente da especulação imobiliária e do deslocamento do circuito noturno para outras paragens.

A seguir, voltamos à rua com a mesma percepção de que a cidade nos habita, desta vez com a tarefa de produzir perfis jornalísticos, pequenos retratos transitórios, gestos biográficos de reportar o bairro, entendendo a vida no contexto, tempo que passa no espaço e vice-versa. A definição das pessoas perfiladas foi decidida pela própria turma, buscando representar, do jeito mais diverso possível, o mosaico de vidas simultâneas. Surgem, então, histórias do cotidiano: vender livros, abrir um bar ou uma loja, desenhar, escrever, rezar, fazer comida, catar resíduos. Ou permanecer visível pelas lendas urbanas, como foi o caso do Príncipe Custódio. 

A edição desse material foi outro desafio. O processo coletivo de revisão envolveu boa parte da turma em tarefas de corrigir textos e alinhar as melhores imagens. Tentamos reproduzir o mapa do caminho percorrido, misto de planejado e aleatório, feito de um ritmo linear que se quebra a cada esquina se estivermos de olhos atentos. As páginas com caligrafia e desenhos à mão produzidos nas derivas oferecem ao leitor os bastidores da escrita. No conjunto, temos a intuição do quanto a cidade e seus autores-leitores-habitantes escapam e resistem mesmo nos processos de planificação e gentrificação do cotidiano. Talvez, como provoca um dos perfilados no livro, a Cidade Baixa seja mesmo o jeito menos porto-alegrense de ser porto-alegrense.

Boa leitura.


Cida Golin e Ana Gruszynski – Professoras da disciplina Jornalismo e Cultura, FABICO, UFRGS, primeiro semestre letivo de 2022. 

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