Crônica

De uma alta mira, ora pro nobis…

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De uma alta mira, ora pro nobis…

O calor não era nada assustador, talvez por ser o inverno amazônico ou por eu ter crescido no (e sobrevivido ao) verão de Porto Alegre. 

Enquanto aguardava minha mala fui ao banheiro, ali o primeiro desassossego de uma típica estrangeira na própria terra. Uma mulher arrumava os cabelos. Estava a viajar e não a vender cestos como costumeiramente vejo em Florianópolis, Porto Alegre, São Paulo ou alguma outra cidade brasileira. Da etnia Arara, professora numa escola rural do tal português e da língua materna tão rejeitada, falou orgulhosa ensinar as duas. 

Dias depois estava na Vila Ressaca, região bem afetada pela Belo Monte e onde está instalada a mineradora Belo Sun e um assentamento do MST desde julho do ano passado. A diretora da escola me contava, com igual orgulho, que na vila “falamos o português”. Eu entendi. Minha curiosidade talvez parecesse uma verificação ou uma desconfiança da qualidade da escola. Mal ela sabia que eu queria mesmo era algo que só ela tinha, uma língua mãe diferente da minha. Uma língua de uma linhagem materna conhecida. Eu, órfã dessa língua, porque só me chegou o português, procuro com os olhos um Brasil de maternagens esquecidas ou ceifadas e me pergunto se faria diferença se eu tivesse duas mães. Da minha avó nem a linguagem da lida na terra eu aprendi e muito menos a língua da mãe de sua mãe. Nenhuma cantiga, nenhuma história, nenhum tom. Quem seria eu se minha avó tivesse me embalado com alguma melodia de sua mãe?

Na Vila Buiuçu, em Porto de Moz, umas três horas de voadora (uma embarcação que parece uma lancha) do centro de Altamira, dona Santana cantou para mim sentada no seu sofá cuidadosamente colocado em frente a televisão de tubo de umas 20 polegadas, que funciona à base de um motor a óleo, ela cantou inabalável mesmo com a televisão ligada. 



Dona Santana, neta de escravos, que chegou naquela terra com seus onze anos no dia 16 de setembro de 1954, às 16h me cantou uma ladainha quilombola apreendida na vila de origem, um tanto próxima, mas não muito. Leu a cantiga impressa em um folheto. Não lembrava de cor como lembrava da data da chegada naquela vila que no seu tempo de pequena não tinha ninguém. E lembrava porque viu a data na folhinha de catecismo que ela guardou. E cantou a cantiga que eu, na minha ingenuidade romântica de estrangeira, achava conter algo de iorubá ou sudanense ou banto. A ladainha era em latim. E ouvi um “ora pro nobis” olhando atenta para as mãos de dona Santana que lembravam as da minha avó. Depois de cantar ela foi ver sua novela. 

A tv ficaria ligada até as 21h, quando o motor seria desligado e enfim o som da mata prevaleceria. Sim, porque engana-se quem acha que a floresta é silenciosa. Não há energia em Buiuçu, ao menos não a tal elétrica produzida pela Belo Monte, que parece escolher qual Brasil abastecer. A luz pouca da casa de dona Santana garantiu, mesmo nesta época chuvosa, perceber um raro céu de estrelas nas margens do Xingu cujo tamanho faz brincar de ser mar de tanto que ele esconde a outra margem. 

Padeci esses dias em Altamira. 



Padeci na minha ignorância de Brasil, no meu desconhecimento perigoso sobre Belo Monte, e sobre Belo Sun – ambas com seus nomes provocativos a nos fazer repensar o belo. Padeci numa transamazônica de barro vermelho e pastagens e monocultura; de terras compradas por gaúchos ou herdeiros da sua tradição que estão a trocar plantações de cacau por soja transgênica e floresta por pasto. E padeci em vergonha “das nossas façanhas” que servem de modelo “a toda a Terra”. Era possível contar nos dedos as castanheiras, e isso me lembrava as araucárias do sul do Brasil. Tudo tão distinto, tudo tão igual.

Depois de quase 12h atravessando o Brasil eu chegava a tal última fronteira: era Altamira. O maior município em extensão territorial do país, com fama de mais violento, o município-sede da hidrelétrica 100% brasileira, o que comporta o sonho de alguns em ter uma nova Serra Pelada e de outros petróleo, a terra onde Dorothy está enterrada, o local de comunidades quilombolas e de mais de dez etnias como os Xipaya, Curuaya, Arara da cachoeira seca, Arara do laranjal, Kayapó, Kararaô, Asurini, Araweté, Parakanã, Juruna, Arara da volta grande e Xikrin, a terra do tucunaré e do jambo e de uma culinária capaz de fazer meus gostos e predileções se abalarem. O afeto faz isso e passa pela boca, pelas mãos e pelos pés. 

Foram dez dias de trabalho e de alfabetização. Eu precisava perguntar várias vezes os nomes dos peixes e das vilas, me faltava a folhinha de catecismo. E, sinceramente, nem sei por onde começar porque estar na Amazônia com as pessoas que lá vivem, de nascer ou de partir, é estar em casa sem conhecer a própria casa e sem falar a língua, apesar de falar a mesma língua. 

Qualquer coisa que eu escreva será a menor. Como se eu não tivesse condições em mim para perceber os detalhes do tom da ladainha cantada por dona Santana porque, apesar do seu belo latim, o acento era o da língua de uma avó que talvez nem ela lembre como falava porque algumas coisas se aprende no embalo da cantiga sussurrada num colo de mãe; ou no ritmo do carimbó. Na Vila Maripi dançamos, pertinho dali, dona Santana, pacienciosa, tentava me fazer entender o passo daquela dança nascida das mãos e pés dos agricultores daquela terra. De todos os lugares que fui nestes dez dias, foi Maripi o único em que danças foram dançadas e os tambores pulsaram. 

No Pará algo muito delicado sobre o significado da linguagem e da língua se faz perceber e me fez sentir. A língua é movimento, uma reza em uma ladainha, um passo de dança. Algo já cantado por Tom Zé. Essa língua brasileira está para além da gramática da folhinha de catecismo, todas as línguas estão. 

Depois de dançar o carimbó, me banhar no Xingu, em cachoeira, de comer o tambaqui, a maniçoba e umas castanhas tiradas na hora do seu ouriço e dormir em rede na casa da Sirene, a filha de dona Santana, me senti com noções básicas de uma língua desconhecida, mas minha também. Como se pudesse, nesses dias, incorporar um pertencimento que me habita de nascença, quase em segredo, e, agora, crescido, por desejo.

Nossa ladainha pode ser em latim, mas é cantada ao ritmo quilombola, de um tambor iorubá, de um passo inventado das nossas misturas e de tantos outros tons num sincretismo caótico capaz de fazer carne de charque ficar boa com açaí.



A linguagem é uma falta, um corte, nunca diz tudo porque nem mesmo o tudo existe, apesar de insistirmos em procurá-lo, em totalidades divinas. Essa linguagem vive menos na cartilha e mais num tom de cor e num passo de dança, num ritmo de fala, numa memória de afeto. Essa língua pátria só é cidadã quando na boca de alguém com poder e chance de voz. A língua e a linguagem estão para além da palavra e dos sentidos e da etimologia, ela é o sentir.  E assim como o amor seu entendimento um mistério.

A linguagem, a palavra e o amor talvez sejam apenas caminhos, o lugar onde pousamos os pés. Só nos resta dizer baixinho “Sancta Maria, ora pro nobis”, a fim de pertencermos à própria caminhada.


Um agradecimento especial a toda equipe da Promotoria Agrária do Ministério Público Estadual do Pará, em especial à Dra. Renata Cardoso, às assessoras Mayara Wanger e Luize Alves e à Sargento Gleiciane Barroso pelo convite para abrir o Fórum Agrário do MP e ministrar oficinas nas comunidades quilombolas e outras atividades. Guardarei saudades.


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione

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