Crônica

Depois da chuva

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Depois da chuva (Foto: Fernanda Bastos)

Nos últimos dias tenho sido alvo de ataques de uma milícia digital organizada, destinada a me constranger por eu ter feito o meu trabalho. Críticos criticam. Às vezes não é agradável. Às vezes geram desconforto, mas crítica não é propaganda. E jornais não são canais de YouTube. Em um cenário cultural maduro e saudável, quem gosta de livros não ameaça críticos literários. Mas a gente sabe que desde 2018 muita coisa inaceitável se tornou banal no Brasil.

Assim, embora tenha sido extremamente doloroso ter atravessado esses dias, não posso dizer que me surpreendo com o que vem acontecendo. Nas últimas décadas resenhei livros magníficos, livros bons e livros ruins. Faz parte do ofício. Por conta das minhas posições já fui cortado de eventos literários e perdi muitas oportunidades profissionais. Nunca reclamei porque, como qualquer pessoa adulta, aceito o preço da liberdade. 

Minha tese de doutorado é sobre um autor negro. Meu primeiro pós-doc foi sobre dois autores negros e meu atual pós-doc também é. Tenho livros sobre isso. Dou cursos sobre isso. E edito gente negra não porque são negras, mas porque eu sou um crítico tão comprometido com a literatura que luto para que o racismo não continue a contaminar nossos julgamentos literários. A despeito dessa luta – ou por causa dela – já teve gente me desejando a morte, já teve gente me chamando de racista. E já teve autor contemporâneo sugerindo que eu fosse torturado “como todo mundo lá naquele nojo da USP”. 

Antes eu costumava me agarrar à crença de que sou um trabalhador fazendo seu trabalho. E que, por óbvio, nenhuma pessoa deveria ser punida por isso. Contudo, o espaço público se deteriorou rapidamente, tornando-se hoje um lugar intelectualmente desidratado. Não vejo mais nenhum sentido civilizatório em produzir textos sobre literatura quando a literatura se tornou somente um item de série na fabricação das mercadorias editoriais. Desse modo, decidi encerrar minha participação na Parêntese. Agradeço imensamente a generosidade do professor e mestre Luís Augusto Fischer, foi uma honra ocupar esse espaço tão disputado.

Daqui para a frente farei como Voltaire recomendou. Há um nível de violência que uma pessoa negra consegue suportar. E esse nível naturalmente foi ultrapassado. Deixo o debate público nas mãos daqueles que conseguem suportar suas aflições. Como materialista debochado que sou, torço para que a verdade objetiva seja outra, a Terra seja plana e que o dinheiro, a truculência e o antiintelectualismo possam fornecer à literatura negra aquilo que meu pensamento não conseguiu dar. Mandem notícias. Estarei lá fora, regando meu jardim.


Luiz Mauricio Azevedo  editor-executivo da Figura de Linguagem e crítico literário; autor de Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra (Sulina, 2021).

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