Crônica

E se a periferia fosse o centro? – Apresentação

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E se a periferia fosse o centro? – Apresentação

Contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres.

Não se deixar cooptar. Não se deixar esmagar. Lutar sempre!

Florestan Fernandes

 E se a periferia fosse o centro? E se a prioridade nos investimentos públicos fosse destinada a quem mais precisa, nas bordas do sistema? E se os saberes/epistemes das classes populares e suas matrizes ameríndias, africanas, afro-brasileiras, periféricas estivessem no centro da organização curricular? E se as pessoas em suas múltiplas identidades e pertencimentos fossem efetivamente respeitadas e consideradas como mais importantes do que as mercadorias? E se as escolas tivessem de volta a gestão democrática e não fossem golpeadas pelas gestoras da política educacional? E se a classe trabalhadora tivesse o poder e não os donos do capital? E se os estudantes, suas necessidades e interesses, estivessem no centro do trabalho da escola?

A conjunção se, aplicada nas situações elencadas, ao mesmo tempo que é projetiva e hipotética, ao indagar outras possibilidades de existência, induz à reflexão radical ao trazer consigo a denúncia das desigualdades e injustiças sociais e curriculares vividas e percebidas.

Sob um contexto pandêmico, no qual cerca de 700.000 pessoas, no Brasil, morreram e dezenas de milhares ficaram com sérias sequelas – centenas de milhares por ausência da ação do poder público – é preciso fazer perguntas e buscar respostas, que são absolutamente centrais, como esta: e se os governantes tivessem dado prioridade à vacinação da população e condições de trabalho online para estudantes e professoras/es?

No que depender de nós, que não fomos negligentes – pedagógica, humana e politicamente falando -, a esperança há de vencer o medo e outro dia há de nascer. É com este espírito otimista e imensa alegria que apresentamos esta publicação às/aos leitoras/es. Ela se insere em um conjunto de atividades que homenageiam o aniversário dos 60 anos de criação da EMEF Saint Hilaire. Há 30 anos atrás, em 1992, a escola passou a integrar a Rede Municipal de Porto Alegre, pois originalmente fazia parte do município de Viamão. Fruto de um processo organizativo da comunidade local, mobilizada em torno do Orçamento Participativo, um conjunto de vilas, entre as quais a Panorama e a atualmente denominada Bonsucesso, foram anexadas e passaram a fazer parte de Porto Alegre, assim como os equipamentos públicos nelas existentes.

Em 2022, uma outra efeméride foi celebrada e, ao mesmo tempo, problematizada, e que é objeto de reflexão neste registro. Oficialmente, Porto Alegre foi criada em 26 de março de 1772, portanto há 250 anos. Um conjunto de manifestações e elaborações críticas, dos quais alguns de nós pudemos acompanhar junto ao projeto PoAncestral – muito além de 250, foram desencadeadas frente à concepção eurocêntrica e descontextualizada da festividade. Tal questionamento também esteve presente na programação da Feira Literária da Escola (FLISH), que elegeu como temática central Porto Alegre: Histórias que não te contaram.

Encontraremos aqui algumas das muitas produções realizadas no cotidiano de sala de aula ao longo do ano letivo, por estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental diurno e das Totalidades Finais da Educação de Jovens e Adultos (EJA), em diferentes áreas do conhecimento e componentes curriculares.

Estão presentes, ao longo de sete capítulos, mais de uma centena de produções feitas por noventa autoras/es em diferentes gêneros discursivos: crônicas, poesias, prosa intimista, histórias em quadrinhos, contos, relatório de pesquisa, textos de opinião, narrativas míticas, cartas pedagógicas – a revelar a imensa potência da reflexão e da flexibilidade criativa existente.

A premissa que está na base da iniciativa é a de que todas/os nós somos sujeitos de produção de conhecimento! E a partir da apropriação e do uso social da língua e da progressiva familiaridade que se obtém com o exercício sistemático, podemos (e precisamos) nos autorizar a partilhar o que criamos. Afinal, é preciso encontrar o leitor, a leitora – razão última da escrita.

Nesta direção, adquire vital importância a sistematização de nossas práticas como educadoras/es, nas quais é possível perceber o caminho percorrido, os conhecimentos selecionados e trabalhados, os métodos e os recursos utilizados e, sobretudo, a voz e a produção dos sujeitos: nossas alunas e alunos. Há muitos aprendizados quando nos reencontramos com o registro e identificamos o pulsar da vida que brota do texto e que faz nosso olho brilhar, nos emociona, nos faz rir gostosamente, nos toca profundamente, nos convida e provoca a ver o mundo com outros olhos e nos faz pensar convictos: educar e educar-se na prática de liberdade nos faz mais gente!

Nesses tempos difíceis sob ameaças de censura e imposição de reformas educativas conservadoras e privatistas, nos orgulhamos de afirmar que todos os trabalhos nasceram na faina diária de educadoras/es que, ao desenvolver os seus planejamentos educativos com uma intencionalidade crítica, se propuseram a refletir, interrogar, problematizar, para que as/os próprias/os estudantes reinventassem mundos possíveis.

É nas fissuras abertas do sistema que a vida emerge na sua urgência no qual se vive um dia de cada vez e, como não poderia deixar de ser, esta é uma publicação que traz muito de empatia, partilha e utopia, elementos imprescindíveis para um recomeço pós-pandêmico. 

Queremos crer que há algo nela com um potencial de curar as dores da alma, depois de secar as lágrimas e exorcizar os desgovernos amantes da necropolítica. A palavra regenera! O diálogo é ponte, a ciência salva e certamente não há saída para a vida em sociedade fora da democracia substantiva e da participação popular nos destinos de um país.

Por fim, gostaríamos ainda de agradecer o apoio dado pela Equipe Diretiva da escola e aos integrantes do Conselho Escolar que acolheram o projeto e asseguraram, no planejamento orçamentário, o aporte financeiro necessário para a viabilização desta publicação, que tem uma tiragem física gratuita e também versão como E-book. Colegas professoras que integram a coalisão PoAncestral – Muito além de 250 foram entusiastas desde a primeira hora. Júlia Ramos, com um trabalho sensível e talentoso na arte final e diagramação assegurou uma qualidade estética que destacou e valorizou ainda mais o conteúdo da obra. Ana Lucia de Macedo Rüdiger, bibliotecária na UFRGS, gentilmente produziu a Ficha Catalográfica, a partir de contato mediado pela historiadora Cláudia Aristimunha, também integrante do PoAncestral. Alexandre dos Reis, da Grafiset, foi um grande parceiro na fase de impressão do trabalho. Tivemos o privilégio de ter no livro a presença de dois intelectuais que a escola já tem um lastro de relações e que temos grande admiração e estima: o Prof. Alan Alves-Brito (UFRGS), que assina o prefácio da obra, e Francisco Geovani de Sousa (Conselho Popular da Lomba do Pinheiro), que elaborou o posfácio. A todas e todos, nossa sincera gratidão pela generosidade e solidariedade para com a Escola Pública, gratuita, democrática, laica e popular que teima em (re)existir!

Não poderíamos deixar de fazer um agradecimento muito especial a todas/os nossas/os queridas/os alunas e alunos: pela participação ativa nas aulas, pelos debates, pela partilha, pela coragem de dizer a sua palavra, como nos estimulou o grande educador Paulo Freire, por confiarem na seriedade da proposta que fizemos, por terem a paciência da reescrita, pela digitação de suas produções, pela emoção, criticidade e pelos aprendizados que nos proporcionaram e certamente se estenderão a quem ler este livro; o que só aumentou nossa admiração, afeto e orgulho que temos de vocês. Obrigado, gente!

Por fim, uma referência à capa da obra, a partir de um registro do fotógrafo amador Lunara (1864-1937), na Porto Alegre do ano de 1900, intitulado Dois filósofos, no qual duas crianças miram a cidade desde um arrabalde. Sobre a imagem se destaca uma daquelas perguntas nucleares que nos desafiam a pensar com radicalidade e que, por isso mesmo, dá título à obra: E se a periferia fosse o centro?


Sobre os organizadores:

Daniele Gualtieri Rodrigues – Professora de Língua Portuguesa na EMEF Saint Hilaire. Doutoranda em Letras – Estudos de Literatura na UFRGS, onde pesquisa educação literária. Mestra em Filosofia – Estudos Culturais pela EACH-USP. Graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2003). 

Marco Mello – Professor de História e Filosofia na EMEF Saint Hilaire junto às turmas dos oitavos, nonos anos e Totalidades Finais na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Mestre em Educação pela UFRGS. É um dos coordenadores do Coletivo de Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS) e do Projeto PoAncestral – Muito além de 250. 

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