Crônica

FILIGRAM

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FILIGRAM

FILIGRAM – Festival Internacional Literário de Gramado, teve por homenageado Oliveira Silveira, poeta da consciência negra e um dos fundadores do grupo Palmares. FILIGRAM – Festival Internacional Literário de Gramado, uma das cidades mais conhecidas da serra gaúcha e que presta maior louvor à cultura europeia. Creio que esses recortes apresentem bem os intensos debates que ocorreram nos 4 dias em que participei do evento. 

[…]

que o que temos nós lutamos
para sobreviver
e também somos esta pátria
em nós ela está plantada
nela crispamos raízes
de enxerto mas sentimos
e mutuamente arraigamos
….quem sabe só com isto:

que ela é nossa também, sem favor,
e sem pedir respiramos seu ar
….a largos narizes livres

[…]

Quando Fernando Gomes, um dos coordenadores do Festival, me convidou, não tive dúvidas em aceitar, pois o conheci em 2019 como organizador do evento Canela Lendo +. Naquela ocasião, os debates literários já promoviam espaço para amplificar vozes diversas na literatura. Agora, em Gramado, a curadoria foi coletiva e conduzida por pessoas interessantíssimas, e faço questão de assinalar, sobretudo, a presença do coletivo da região da serra de afroeducadoras Sankofa. A cara do festival já ia se desenhando na composição da curadoria. Eu sabia que vinha coisa boa, e não estava enganada.

A minha participação no FILIGRAM esteve ligada às discussões em torno da diversidade, sustentabilidade e futuros possíveis, um dos 5 eixos do festival. Costumo dizer que o tema relações raciais não deve evitar a perspectiva do conflito, digo mesmo que é impossível evitar algum nível conflitivo por um simples motivo: o racismo é uma relação de poder que viola os direitos de mais de metade da população. Não há como esperar, neste contexto, palavras suaves. Também penso que, se pretendemos chegar em um outro momento quanto a este tema, precisamos enfrentar o fato de que nenhum problema se resolve sem nomeá-lo, nem sem que apareçam suas inúmeras complexidades e contradições. Mas não pretendo me estender sobre o que Silvio Almeida, Lélia Gonzales, Cidinha Bento e tantas e tantos outros já falaram antes de mim – e melhor. Se faço essa breve digressão é para falar que as discussões de que participei, e outras que assisti, não ocorreram sem que provocassem algum mal-estar. E nem poderia ser diferente.

Terra de engenhos

negro moendo

cana escorregando

suor amargando

terra de minas

negro cavando

ouro sorrindo

(ouro dos outros)

terra café

cacau e milho

negro plantando

negro colhendo

esperanças renascendo

terra de estância

charqueada grande

negro se salgando

terra quilombo

[…]

Ouso dizer que o Festival internacional literário de Gramado assumiu o compromisso com a compreensão de que a literatura compõe o campo discursivo e o imaginário social, e com isso ampliou o diálogo para que nós, escritoras e escritores, pudéssemos falar sobre as histórias que escrevemos e também as histórias que vivemos. 

Encontrei minhas origens

em velhos arquivos

… livros

encontrei em malditos objetos

troncos e grilhetas 

encontrei minhas origens no leste

no mar em imundos tumbeiros 

encontrei 

em doces palavras

… cantos 

em furiosos tambores

…ritos

Kiusam de Oliveira é pedagoga, doutora em educação, escreve Literatura Negro-Brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil, como ela mesma denomina. Kiusam contou muitas histórias infantis, para crianças, mas também para adultos que insistem em ignorar a História, agradou aos pequenos e causou desconforto em alguns dos grandes. Kiusam está entre as escritoras recomendadas pela ONU. Conhecer e escutar a autora foi um dos privilégios proporcionados pelo festival.

Richard Serraria nos brindou com o show Sopaporiki, e a voz do tambor Sopapo se fez ouvir no festival em espetáculo que tem por guia os Orixás.

Futhi Ntshingila, escritora sul-africana, trouxe com seu jeito doce de falar a realidade que compõe suas histórias de ficção: a desigualdade social, racial e de gênero, em um território que foi marcado pelo Apartheid. Histórias conduzidas pelo olhar feminino.

Como escritora e leitora, foi um presente poder conviver com poetas como a Ana Dos Santos e o Ronald Augusto, artistas das letras que eu conheço de longa data, e com os quais tive oportunidade de formar novos laços de afeto. Tive oportunidade de falar com escritores cujas obras eu conhecia, mas não as pessoas que as escreveram. Este foi o caso de Paulo Scott, Richard Serraria e Danichi Hausen. Além disso tiveram escritoras e escritores que descobri no FILIGRAM, despertando meu desejo por novos livros e aumentando a minha lista de leituras. Quero muito ler Kiusam de Oliveira e Fathi Ntshingila. 

Isso sem contar que caminhar pelas alamedas do espaço era a certeza de encontrar muitas amizades literárias, como Lilian Rocha, Neli Germano, Maria Alice Bragança, Liana Timm, Cátia Simon, Alexandre Brito.

E menciono apenas aqueles com quem convivi no período em que lá estive – 4 dias intensos. O festival durou ao todo 9 dias.

Dados os limites da natureza humana, posso falar apenas dos efeitos do FILIGRAM sobre mim, enquanto escritora e leitora. O escritor Danichi Hausen, com quem eu dividi uma mesa, disse que espera que placas tectônicas se movam para que um dia possamos superar as violências de raça, classe e gênero. Para que essas placas se movam é preciso muita literatura, e muito mais do que literatura. Entretanto, uma certeza eu tenho: se placas não se desacomodaram, pelo menos se incomodaram. E isso é bom.

Uma lança caneta-tinteiro

escreveu liberdade no céu

[…]

Taiasmin Ohnmacht é uma mulher negra, psicóloga, psicanalista e mãe de dois filhos. Autora de Visite o decorado (Figura de Linguagem, 2019) e de Vozes de Retratos íntimos (Taverna, 2021).

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