Crônica

Guardem suas fotos

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Guardem suas fotos

Naquele domingo suarento de 20 de novembro de 2005, minha irmã me chamou para almoçar, iniciativa que só ela tomava, enquanto eu desperdiçava tempo tentando demarcar como éramos diferentes. Ela veio ao apartamento que eu dividia com amigos na rua Tomás Flores, um imóvel térreo, comprido, com três quartos na parte principal e um quarto dormitório que ficava nos fundos, numa espécie de edícula separada do restante da casa. Não lembro se almoçamos por ali mesmo, numa área coberta por um telhado de plástico que dividia o apartamento da tal edícula e servia como sala de jantar, ou se saímos pelo Bom Fim à procura de um buffet livre disputado palmo a palmo por milhares de portoalegrenses após o passeio no Brique da Redenção.

Antes da despedida, paramos na área da frente do prédio para uma rápida sessão de fotos, com a então flamante câmera que eu havia acabado de comprar, da qual participou o Vicente, morador da já famosa edícula. Se não lembro do almoço, não esqueço da foto: minha irmã e eu na frente da janela com camisetas e uma bandeira do Inter, formando um X com os braços para fazer pose de torcida organizada. Depois disso, cada um pro seu lado, que aquele domingo exigia estrito cumprimento de rituais.

No meu caso, o único destino possível era o bar de colorados que ficava em frente ao supermercado Zaffari da Fernandes Vieira, cujo dono, muito colorado, era frequentemente visto mais exaltado que seus clientes e ficava brabo com os desavisados que solicitavam algo da cozinha, fechada durante os jogos do Inter, admitindo apenas que providenciassem um salzinho para o estômago na lancheria ao lado – que servia um ótimo bife no pão que inclusive dava nome ao lugar.

Foi no bar dos colorados da Fernandes Vieira que vi aquele Corinthians 1 x 1 Internacional, na companhia do meu amigo Wilson, com quem faria, naquele mesmo bar, uma parceria fundamental para a conquista da Libertadores em 2006. Isso para quem acredita em superstição no futebol. Mas quem não acredita está equivocado.

Quando Márcio Rezende de Freitas ignorou o pênalti no Tinga e ainda expulsou o meio-campista colorado, toda a raiva acumulada contra aquele campeonato descarregamos nas mesas e cadeiras de plástico do bar, apesar de nosso apreço pelo estabelecimento. Posso estar enganado, mas acho que o proprietário nem ligou, ocupado que estava em também arremessar cadeiras vermelhas da cerveja Kayser contra a parede. Já não importava nada.

Saímos dali após o apito final, às vezes o único apito sincero de um árbitro de futebol, decididos a tomar aquelas garrafas de cerveja adicionais que só servem para te desgraçar o dia seguinte. Àquela altura, porém, a ressaca parecia uma sensação mais agradável para a terrível segunda-feira que se aproximava.

A calçada da Osvaldo Aranha em frente à Lancheria do Parque transbordava de gente mais do que o normal. O Vicente, que além de morador da edícula também era muito colorado como todos naquela trama calorosa, reapareceu de seu ritual particular para aquele domingo de decisão. Encontramos por ali nosso antigo professor de Jornalismo que se mostrou mais fanático pelo Inter do que imaginávamos. A câmera recém adquirida à época também registrou fotos daquele encontro em que, de forma descoordenada e desconexa, todos afirmávamos que só na mão grande mesmo para tirar o Brasileirão do Inter, daquele Inter só comparável ao time de Falcão e Valdomiro.

Dessa vez, não há virada de mesa nem árbitro para atrapalhar os planos colorados. A situação é pior: o Inter depende só de si.

Se o improvável acontecer e o Inter conquistar seu primeiro título brasileiro depois de 41 anos sob comando de Abel Braga, os novos analistas do esporte dirão que o campeão não teve brilho técnico, os mais sensatos lembrarão da história pessoal do treinador e sua relação com o clube, já eu vou voltar para aquela tarde de domingo em que não nos deixaram festejar nas altas temperaturas de Porto Alegre e sobre a qual na verdade não existem fotos, perdidas em algum CD mal guardado, como parte daquela vida que também não existe mais.


Daniel Cassol é jornalista. Foi editor e redator do Impedimento.

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