Crônica

Idiomas e alfabetos em tempo de guerra

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Idiomas e alfabetos em tempo de guerra

Recentemente fui aceito para um estágio na associação La Maison des Mots (A casa das palavras, em tradução literal). Ela fica na cidade em que moro, Argentan, na região francesa da Normandia. Por três semanas fiz intervenções como formador, em aulas dirigidas para grupos de alunos estrangeiros, com a intenção de apresentar a língua e a cultura francesas. A associação foi o lugar que me acolheu nos meus primeiros meses na França. Descrevo a seguir três aulas envolvendo um grupo de alunos vindos da Ucrânia, exilados pela guerra.

Aula um

Eu, de frente para uma turma de ucranianos, e o seguinte desafio: trabalhar com o filme de Jean Cocteau que adaptou, em 1946, o conto A bela e a fera. O texto, em livro, é assinado por Madame Leprince de Beaumont, autora que passou para o papel, em 1757, essa história que vem de ainda mais longe, que vem lá da tradição oral. Quem me convidou para fazer a conversa foi a diretora da uma associação que recebe estrangeiros aqui na França. Então, só para esclarecer bem, os ucranianos para quem me dirijo são refugiados da guerra. Dez adultos: nove mulheres e um homem.

Eles não falam francês, mas o filme tem poucos diálogos e eu utilizo apenas cenas curtas, momentos em que posso me apoiar nas imagens e ajudar a contextualizar o que vemos. 

Bela, você é a mais bela!, diz a Fera. 

E com a frase eu posso ligar o nome da personagem com o adjetivo. Funciona. 

Antes disso ainda trabalhei de forma ilustrativa com a metáfora da rosa, que foi roubada pelo pai do jardim da Fera. O ato de roubar a rosa fez com que o pai precisasse trocar uma pela outra: a flor pela filha; estava dada a representação figurada que ali existe. Funcionou também. 

Depois entrou para a conta a questão da metamorfose. A Fera vira príncipe: o monstro que é homem, ou que habita no homem. E aí mostrei um quadro de Picasso, aquele do minotauro e o jumento, em que também está pintada uma figura híbrida, a do homem-touro. Fiz uma outra comparação com a imagem do Quasímodo (personagem de Victor Hugo que acabei ilustrando a partir do ator Charles Laughton, em foto do filme de 1939). Tanto o Corcunda de Notre Dame como a Fera foram monstros apaixonados. 

Eu não acho que essa tenha sido uma aula de francês. Até porque meus limites com a língua ainda me fazem esbarrar em muitos problemas de construção de frase, de ortografia. Mas foi uma troca interessante, foi o que quis propor. Eu, como brasileiro, eles, como ucranianos, e um idioma estranho nos colocando em contato. O melhor disso é que pude me apoiar nos objetos artísticos: os livros, os filmes, o quadro. E no pano de fundo a realidade da guerra que os colocou numa sala de aula, bem na minha frente.

Aula dois

[Continua...]

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