Crônica

Julien Sorel no Vale do Taquari

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Julien Sorel no Vale do Taquari O meteorito de Putinga em obra de Gisela Schinke - Estrela-RS (Museu da Ufrgs)

Estou tirando fotos do monumento na praça central de Putinga. É uma fonte com uma rocha de 2 metros de diâmetro representando o meteorito que caiu no município em 1937. Pergunto pra senhora que trabalha na igreja se é um fragmento do aerolito. Ela me diz que é uma réplica. Agradeço, ela faz questão de adicionar, a voz com um farelinho de Itália:

A gente não tem tempo pra essas coisas aqui. A gente trabalha muito.

Dali umas horas, terei a minha fala da noite na feira do livro da cidade. Em 2022, fiz várias pela região. Mato Leitão, Progresso, Arvorezinha, Anta Gorda, Ilópolis, Nova Bréscia, Capitão, Roca Sales, entre outras comunidades banhadas pelo Taquari e afluentes. Levo a minha formação em Letras e as minhas tentativas como escritor, e, coçando a cabeça, tateio uma pedagogia da leitura. Converso com crianças, adolescentes e suas famílias sobre a importância de ler. Não me apresento como professor ou escritor: me apresento como leitor. 

A semiótica do sacrifício é forte no Vale do Taquari. A gente conhece o conto, já vem de dentro de casa: os colonos chegaram pobres da Europa, ralaram muito por aqui. Disso, tal como em O Vermelho e o Negro, qualquer jovem leitor é Julien Sorel munido de um livro e sendo xingado pelo pai. Como nos conta Stendhal, o père Sorel poderia perdoar o porte magro do filho, pouco propício ao trabalho físico, mas a mania de ler do guri lhe era odiosa. O meteorito de Putinga é como o hábito da leitura de Julien Sorel, uma d’essas coisas pras quais gente que trabalha não tem tempo. 

É verdade que, até certa idade, a leitura ainda é vista como boa coisa. O quadro muda quando chega a adolescência. Parece que ler só faz parte do universo infantil, que tem data marcada pra acabar. Noto isso com força no Vale do Taquari: criança é quem lê, jovem e adulto trabalham ou se preparam pra trabalhar. 

É aí que eu tento intervir com as falas nas feiras: ler também é trabalhar. Ler cansa, é difícil, até pra quem gosta de ler. A leitura dói, é um exercício que exige muita concentração. Ler faz suar. O hábito da leitura é coisa de gente grande e responsável; nem tantas vezes lazer, muitas vezes sacrifício. E não é só o Vale do Taquari que precisa saber disso: ler não é só o lúdico, a fantasia, o tempo sobrando. Ler é, sobretudo, um grande trabalho. Julien Sorel compenetrado em seu livro, menino franzino, inapto ao trabalho físico, está trabalhando. 

O que eu não digo nas feiras: Lajeado, a minha cidade natal, é a maior do Vale do Taquari. Está chegando aos cem mil habitantes. E nunca teve um sebo. Pior: praticamente não há livrarias na cidade. Tem aquela do shopping, tem aquelas duas ou três do centro, onde os livros ocupam menos espaço que a papelaria.

A gente conhece quem lê em Lajeado. São quase 100 mil habitantes, mas eu sei quem são todas as pessoas que têm o hábito da leitura aí no meio, reconheço cada Julien, cada Julienne Sorel.

Lajeado tem uma universidade, sua grande biblioteca, mas lê pouquíssimo. O lajeadense brilha os olhos pro edifício que vai mudar a paisagem, que vai bater recorde de altura, ultrapassar as bordas da serra no horizonte. O rooftop lajeadense é o cume daquele conceito de trabalho que ignora o hábito da leitura, a literatura, a preservação do patrimônio. 

Talvez o progresso do Vale do Taquari, um progresso mais orgânico e amplo, tenha melhor terreno em suas cidadezinhas que contemplam as alturas sem se curvarem ao arranha-céu.


Augusto Darde é professor de francês, doutor em literatura francesa (UFRGS) e escritor.

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