Crônica

Me olha com olhos de ver

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Me olha com olhos de ver Obra de Ruth Aiko Asawa na Bienal de Veneza (Foto: Samantha Buglione)
Era década de 60 e um amigo levou para Ruth Aiko Asawa uma planta do deserto para que ela a desenhasse. Precisou primeiro reconstruir as formas da planta com as mãos. Anos antes tinha aprendido a técnica de crochê de arame em uma viagem a Toluca, no México, e confessou haver um especial interesse pela economia de uma linha capaz de fazer algo no espaço, encerrando-o sem bloqueá-lo. “Ainda é transparente”, ela dizia.  Formas capazes de se interligarem e se entrelaçarem só podem ser feitas com uma linha, porque uma linha pode ir a qualquer lugar. A linha fio, o fio de Ariadne, a linha que costura, a linha que faz laço e nó, a linha que marca limites e bordas e dá contornos (e conforto, às vezes), a linha que cria formas e deforma, a linha do tempo, a linha das rugas, a linha cicatriz, a linha da letra cursiva, a linha do horizonte, a linha do mar, a linha de um sorriso.  A linha traça e trança e tece a história. Não seria isso a arte? Uma linha, a linha de um desejo? E não seria a Bienal de Veneza a representação mais elementar e paradoxalmente ambiciosa de dar voz, forma e narrativa as várias maneiras de desenhar, sentir, estar e desejar no mundo?  Me parece que a curadoria de Cecilia Alemani, nesta 59a edição da Bienal de Arte de Veneza, com 1.433 obras de 213 artistas de 58 países, evidencia o quanto ceder a um desejo mais que a um dever pode impactar de forma impensável o mundo. Quem sentiu sabe do que estou falando. Não é insignificante 90% de artistas mulheres, não mesmo. Não é coisa pouca perceber o quanto a tecnologia, sem uma costura capaz de dar sentido e provocar o sentir, se esvazia e resseca; que as certezas sem as dúvidas tornam-se dogmas e nos aprisionam; e que talvez os corpos sejam nossa tábua de salvação num mundo que tornou obsceno arriscar, perder, mudar e desejar.  Afinal a pornografia é a repetição mecânica de um hábito. O corpo sente, mesmo quando a gente mente.  As linhas de Asawa constroem vazios. “Uma linha pode ir a qualquer lugar” ela disse. Uma linha conta uma história, cria uma imagem, é um rasgo. Para Kandinsky, a linha consiste no único elemento da Teoria da Forma capaz de brincar com o equilíbrio da pintura. Brincar e equilibrar são palavras bonitas e quase sinônimos na infância. Tem sentidos e histórias nelas. Quem não é visitado por uma imagem de gangorra, de um caminhar em muros altos ou baixos ou em troncos ou no meio-fio de alguma calçada? Palavras são iscas quando dão espaço. Kandinsky, além de artista, era professor, e falou disso no livro Ponto, linha e plano, por isso o citei aqui, não inventei nada disso.  Sem linha não há forma, nem história, nem limite, nem ponte. Já um ponto final e um nó confirmam a história ou finalizam a tapeçaria. O ponto é a potência, mas é […]

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