O mundo ou o mundo segundo José Falero, Parte I – O chute certeiro
O que quero contar agora começa com uma sacola de cacetinhos do Zaffari em cima da bancada da cozinha. Acrescente-se a isso minha filha de 3 anos, recém -acordada, vendo desenho na sala. Era um lindo domingo de sol. Eu estava sozinho em casa com ela. Minha mulher havia ido à feira. Eu, da cozinha, perguntei para a minha filha se ela gostaria de comer algo. “Pão com manteiga”, respondeu, sentada no sofá da sala. A verdade é que ela já havia mirado a sacola de pães enquanto eu descia as escadas com ela no colo. Tirei um cacetinho da sacola e o larguei em cima da pia. A seguir retirei uma faca da gaveta e peguei a manteiga do refrigerador. Cortei o pão ao meio e passei manteiga. Peguei, na cristaleira ao lado do refrigerador, um prato de plástico com desenhos de elefante. Minha filha gosta desse prato. A seguir, levei o pão até ela. Ela sorriu e começou a comê-lo imediatamente. Em pouco tempo ela devorou todo aquele carboidrato. A seguir, me deu o prato e me pediu “água com bolinha”, ou seja, água com gás. Dei um beijo em seu rosto e me levantei com o prato na mão. Foi então que aconteceu.
Em 1997, Roberto Carlos acertou um dos chutes mais espetaculares da história do futebol. Era a abertura do Torneio da França, e a Seleção Brasileira jogava contra os anfitriões do evento. O então lateral-esquerdo deu uma pancada de três dedos na bola: ela desviou da barreira, pareceu ir em direção à bandeira de escanteio para, por fim, acabar “voltando” em direção ao gol. O goleiro Fabien Barthez olhou perplexo para a bola, cuja trajetória parecia – como muito se discutiu – ter desafiado as leis da física. Golaço.
Involuntariamente, naquele domingo de manhã, eu tentei reproduzir, descalço, o chute do Roberto Carlos. Mas, ao invés de uma bola, chutei a mesinha que minha filha usa para desenhar, que fica no centro da sala. Resolvi por livre e espontânea patetice dar um chute de três dedos em um dos pés de sua mesinha, atirando-a para longe. O barulho foi tremendo. Como era possível que eu não tivesse enxergado aquele móvel, que estava lá há mais de um ano?, pensava, sentando-me no primeiro degrau da escada, as mãos por instinto no pé direito, olhos fechados, dedo latejando, coração disparando: uma dor aguda, medo de olhar e ter esfacelado uma unha, ter cortado um dedo, com sangue e osso para fora. Abri os olhos: minha filha estava parada à minha frente, assustada. Eu disse que não havia acontecido nada. Tomei coragem e tirei as mãos do meu pé: não havia sangramento, ainda bem. Esperei mais alguns instantes até que a dor passasse. Minha filha continuava imóvel, me olhando. Forcei um sorriso para tranquilizá-la. Eu ofegava de dor. Tentei me levantar: era impossível colocar a parte da frente do pé direito no chão: meus dedos pareciam queimar de sensibilidade. Só então reparei que eu também havia deixado cair no chão o prato que, por milagre, não havia se quebrado. Juntei-o com dificuldade e manquei até a pia, onde o coloquei. A seguir abri o refrigerador, peguei a garrafa de água mineral, abri a garrafa e enchi metade do copo do Baby Shark com a “água com bolinha”. Entreguei-o à minha filha, manquei até o meio da sala, recoloquei a mesinha no lugar e quase me atirei no sofá da sala, convidando minha filha para ficar ao meu lado vendo desenho. Ainda meio desconfiada pelo acontecido, ela voltou ao sofá e ficou tomando sua água e vendo Masha e o Urso.