Crônica

O que você esperava?

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O que você esperava? Tempo de lutar pelo mais básico | Foto: Freepik

Por favor, apontem o holofote para cá. Por favor, rápido antes que seja tarde demais! Sim, sim, aqui está bem. Ufa! Dá tempo. A crônica ainda está viva, viu, Fuks? Vamos lá.

Sim, qualquer pessoa que tente agarrar uma época com as mãos, abraça o vazio. O que você esperava? Se leu “O nascimento da crônica”, de Machado, sabe muito bem que não há como a crônica abandonar o mundo. Ao que me parece, enquanto houver ao menos duas pessoas no planeta dispostas a compartilhar pensamentos profundos ou bobagens, haverá crônica. O tempo finito é o do cronista, sujeito de carne, osso e vaidades, não da crônica. É simples, não? Acho que é isso: as páginas urgentes sempre existiram e existirão, os escândalos todos e as novidades eufóricas também. Por alguma razão, lembrei da capa do livro “Trinta e poucos”, de Antonio Prata. Já viu?

Quanto mais horas passo lendo crônicas do presente (e do passado também), como costumo fazer entre os intervalos em que minha vida é mais minha do que do trabalho, mais percebo a vitalidade das palavras dispostas no tempo que habito. Penso no escritor José Falero e na sagacidade de sua antologia de crônicas “Mas em que mundo tu vive?”; sinto o sopro de vida com o maravilhoso “Pela hora da morte”, de Nathallia Protazio. Nadando de braçadas pelos algoritmos, aprecio os saborosos textos de Dalva Maria Soares, Ana Elisa Ribeiro, Franklin Carvalho, Clara Cerqueira, Kátia Borges, Paloma Franca Amorim. Verdade. A lista é grande; o tempo, curto. Daí eu me deixar seduzir pelas palavras encantadas de Paulinho da Viola: “O meu tempo é hoje. Eu não vivo do passado, o passado vive em mim”. Há tanto por descobrir. Ao mergulhar nas crônicas dessas pessoas e tantas outras, encontro meios sorrisos, mas também gargalhadas a plenos pulmões de quem enfrenta a gravidade do mundo; a infelicidade passeando pela borda da vida de quem teima em ser feliz, apesar de tudo; o muito caminhar entre as impermanências das coisas; os bichos à solta. Em outras palavras: mistério do planeta.

Outro dia, apesar do calor, vi na rua um menino inebriado pela imensidão do céu enquanto expelia fumaça de crack que lhe dava sensação de poder. Do ponto reluzente do menino, me veio a memória involuntária: “Na lata do poeta tudo-nada cabe”. Em outra esquina, com a mudança repentina desse clima que é nosso, como se o menino tivesse conseguido tingir todo céu de cinza, vi, sob a chuva torrencial, um homem que trabalhava lá no alto capturando os fios do poste para transformá-los em cobre, depois em papel-moeda e depois talvez em alimento. Ele parou seu serviço para contemplar o lindo canto de um pássaro azul que se abrigava da chuva na janela de um prédio decadente. O canto era tão alto e bonito que o homem sequer percebeu o policial enfurecido que vinha a cavalo em sua direção. Apressado, fui para casa escrever.

Ainda outro dia, vi um meme que era assim: uma criança branca encolhida chorava com grande desespero e tentava se proteger de alguém que lhe estendia as mãos vazias. Sobre a criança, o texto: “Conservadores”; sobre as mãos vazias, o texto: “Coisas que não existem”. Na hora, eu dei risada, mas também fiquei um tanto melancólico.

Não tenho habilidades de vidência. Não sou, enfim, Baba Vanga. Ando pelas ruas e por isso intuo que a vida não se revela apenas pelo espetacular. Por mais aborrecido que o mundo possa parecer em suas múltiplas formas de existir, é preciso, na linguagem viva, fissurar as propriedades que não permitem a passagem da luz e então redescobrir o espanto em meio ao cotidiano. Olho para trás e relembro “Vista cansada”, de Otto Lara Resende. Ele diz: “Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença”. Olho para frente, releio Dalva, “A janta tá pronta?”, e reflito sobre o ambiente de escrita que cada um possui, o reflexo disso em seus textos. Ela diz: “É aqui, no espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado dessa escrita fique gostoso”.

Desocupado leitor, desocupada leitora, agradeço por estar aqui e compartilhar comigo seu tempo de vida. Mesmo habitando um território continental, olha só, nos encontramos. É tão bom quando o mistério nos permite habitar o mesmo espaço. Olho para o relógio digital. Querendo ou não, o tempo passa.


Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S).

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