Olha o que acontece com o pretinho no lado de dentro
Eu trabalhei como porteiro em prédios da Bela Vista, por uns anos. Testemunhei coisas horríveis, como as campanhas a favor do Aécio contra a Dilma, que aconteciam na Praça da Encol. O povo daquelas redondezas simplesmente não presta, e não é de hoje. E eu passava todos os dias na frente do Grêmio Náutico União que tem ali perto, na avenida Nilópolis. Sempre lembrava de Fim de Semana no Parque:
Olha só aquele clube, que da hora
Olha aquela quadra, olha aquele campo
Olha, olha quanta gente
Tem sorveteira, cinema, piscina quente
Olha quanto boy, olha quanta mina
Afoga essa vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart, dá pra ver
É igualzinho o que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube, que da hora
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Mas eu não conseguia evitar o sonho de entrar naquela porra. Eu ficava pensando que talvez não fosse impossível pagar uma mensalidade. Eu ficava pensando que, se eu fosse sócio, talvez eu pudesse levar os meus amigos do Pinheiro, pra gente bater uma bola, assar uma carne, tomar uns banho de piscina. Porque eu vivo num lugar onde não tem coisas como as que tem naquele clube, exatamente como Fim de Semana no Parque denuncia:
Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar, nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso
Mas aí: se quiser se destruir está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto
A cada esquina, 100, 200 metros
Nem sempre é bom ser esperto
Schimth, taurus, rossi, dreyer ou campari
Pronúncia agradável, estrago inevitável
Nomes estrangeiros que estão no nosso meio pra matar
M – E – R – D – A
Um dia, conversando com a Dalva sobre o meu antigo desejo de me tornar sócio daquele clube, ela me alertou sobre os problemas de conviver com a classe média branca que frequenta aquele espaço: fariam de tudo pra eu não conseguir me associar, e se mesmo assim eu conseguisse me associar, sempre fariam de tudo pra que eu nunca me sentisse à vontade ali dentro, na mais otimista das hipóteses.
Dalva tinha razão, e o episódio lamentável envolvendo o Seu Jorge comprova isso.
Isso me faz pensar que não é suficiente um de nós entrar nos espaços. Se o pretinho vendo tudo do lado de fora é triste, pior ainda quando ele entra lá sozinho. Não adiantou de nada o Seu Jorge estar lá dentro do clube na condição de artista consagrado: a branquitude de Porto Alegre fez o que fez. É por essas e outras que eu detesto a Bela Vista, o Moinhos, o Bom Fim, o Menino Deus, a Cidade Baixa. E antes que apareça algum palhaço pra dizer que já me viu nesses lugares, é claro que eu frequento esses lugares: como no caso do clube, infelizmente é só nesses lugares que existem coisas das quais quero desfrutar, porque eu acho que eu tenho o direito de desfrutar, e além disso muitas vezes também sou obrigado a frequentar esses lugares a trabalho. Mas que fique claro que acho esses lugares todos uma bosta. O povo desses lugares é insuportável, salvo, claro, as exceções. E toda vez que vou nesses lugares, faço o possível pra estar acompanhado do máximo possível de gente como eu. Juntos, somos mais fortes.
Eu gosto mesmo é do Pinheiro, porque pode não ter muita coisa aqui, mas eu me sinto acolhido pelo povo daqui, e no fim das contas é isso que mais importa:
Milhares de casas amontoadas
Ruas de terra, esse é o morro
A minha área me espera
Gritaria na feira (vamos chegando!)
Pode crer, eu gosto disso, mais calor humano
Na periferia a alegria é igual
É quase meio dia, a euforia é geral
É lá que moram meus irmãos, meus amigos
E a maioria por aqui se parece comigo
José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019), Os supridores (Todavia, 2020), Mas em que mundo tu vive (Todavia, 2021) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019).