Crônica

Parece que foi ontem

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Parece que foi ontem
Quando olho pro espelho, consigo ver muitas coisas, mas a passagem do tempo definitivamente não é uma delas. Sou capaz de jurar que os fios brancos no meu cavanhaque estão ali desde o dia que nasci. Mas quando é o contrário, ou seja, quando é o reflexo que olha pra mim, aí, sim, eu percebo que o tempo passou. E como passou! Tô falando do ato de lembrar. Esse exercício às vezes odioso, às vezes alegre, às vezes vergonhoso, às vezes triunfal. Esse exercício tão humano. Aliás, nada tão humano quanto o ato de lembrar. Somos antinaturais por natureza, e o ato de lembrar é a marca registrada desse nosso paradoxo. Quando exercitamos a lembrança, somos mais ou menos como um rato espantando um gato. Somos como um poste mijando num cachorro. Somos um mero reflexo encarando o ser propriamente dito. Sim, porque me recuso a ser definido por esse fragmento minúsculo de humanidade que cabe no que chamamos de “agora”. Esse fragmento não passa de um simples reflexo do que eu realmente sou. O problema é que é justamente esse reflexo, e só ele, que tem acesso à minha pessoa de verdade, que pode visitar o meu eu completo, que consegue encarar a minha existência real. E faz isso através do ato de lembrar. Parece que foi ontem que a série Antônia foi ao ar na Globo. Lembram disso? E também parece que foi ontem que a minha tia Zá deu à luz a sua segunda filha. Antonia, por causa da série. E se não foi ontem, então quando foi, meu Deus, que eu pedi pra ser o padrinho da criança? Lembro da reação da Zá. Ela disse que isso não se pede. Eu dei razão a ela, e então exigi. Parece que foi ontem que a Zá deixou a Antonia com a minha mãe algumas vezes, pra poder ir trabalhar. Parece que foi ontem que só eu me mostrei capaz de acalmar aquele bebê quando abria o berreiro a chorar. Eu cantava Deus e eu no sertão pra ela. Pegava ela no colo e cantava, com a voz mais suave que eu podia: “Nunca vi ninguém/Viver tão feliz/Como eu no sertão”. Essa música estava viva nos meus pensamentos na época, porque era a música de abertura da novela Paraíso. Além disso, era a coisa mais próxima de uma canção de ninar que eu conhecia. Agora a Antonia está aí, debutando. Felicidades, minha neguinha! O Padinho te ama, viu? José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019), Os supridores (Todavia, 2020), Mas em que mundo tu vive (Todavia, 2021) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019).

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